O isolamento social em razão da pandemia de coronavírus tem ajudado a conter o avanço do número de infectados e mortos em decorrência da Covid-19 em todo o mundo. Infelizmente, a medida tem seus efeitos colaterais não apenas na economia, mas também na segurança pública.
O refúgio e conforto do lar é justamente o local mais perigoso para mulheres que sofrem com a agressividade de seus parceiros. O drama não é novo: um levantamento divulgado em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que 16 milhões de mulheres com mais de 16 anos sofreram algum tipo de violência no Brasil, a maioria delas em casa. Durante a quarentena, o problema da violência doméstica se agravou.
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Clique e Assine“Para muitas mulheres e meninas, a maior ameaça está precisamente naquele que deveria ser o mais seguro dos lugares: as suas próprias casas”, alertou no início do mês o português António Guterres, secretário-geral da ONU. A entidade denunciou um “crescimento horrível da violência doméstica em nível global” durante a quarentena e pediu que os governos incluam medidas de proteção a mulheres em seus planos de combate à Covid-19. Do Vaticano, vieram apelos semelhantes do papa Francisco.
O Brasil apresentou algumas medidas para tentar conter os índices de violência e feminicídio (homicídio de mulher motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero). No início deste mês, os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo e o Distrito Federal anteciparam a ampliação de seus serviços da delegacia eletrônica e disponibilizaram o registro online de boletins de ocorrências de violência doméstica.
O governo federal também anunciou no último dia 4 a criação de um aplicativo, o “Direitos Humanos BR”, uma ferramenta para denunciar diversas violações. “A violência contra a mulher cresceu de forma muito exagerada”, afirmou a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, na ocasião. Além disso, a Central de Atendimento à Mulher segue disponível 24 horas por dia pelo Ligue 180 e pelo Disque 100. Os casos mais urgentes devem ser denunciados junto à Polícia Militar no número 190.
Na terça-feira 28, Damares e o procurador-geral da República e presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Augusto Aras assinaram um acordo de cooperação técnica com o objetivo de combater violações durante a pandemia. O termo firmado determina o encaminhamento direto de denúncias durante a pandemia à Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP.
Assim como fizeram países europeus, o governo brasileiro também oferece abrigos para as vítimas que prefiram cumprir a quarentena fora de casa, longe de seus agressores. As medidas, no entanto, estão longe de serem suficientes, como mostram as estatísticas da quarentena – que precisam ser interpretadas com cuidado e não são nada animadoras.
Subnotificação preocupa
Assim como ocorre com os casos de infecção e mortes decorrentes da Covid-19, há fortes indícios de que o enclausuramento tenha intensificado um problema que sempre foi grave: o da subnotificação das ocorrências. O canal criado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos para receber denúncias relacionadas ao coronavírus registrou que do dia 18 de março – quando o serviço foi disponibilizado pelo órgão subordinado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – até 24 de abril foram registradas 7.563 queixas durante a quarentena; destes, 5.156 são de “violência contra pessoa socialmente vulnerável,” que pode incluir mulheres, crianças e idosos. As denúncias específicas de violência contra a mulher foram bem menores (208 ocorrências, 11 delas envolvendo risco de morte).
Uma pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou redução no número de registros oficiais de casos de lesão corporal dolosa, aqueles que demandam a presença física das vítimas: as quedas foram de 29,1% no Ceará, 28,6% no Acre, 21,9% em Mato Grosso, 13,2 no Pará e 9,4% no Rio Grande do Sul e 8,9% em São Paulo. No entanto, o número de feminicídios aumentou 400% em Mato Grosso, 300% no Rio Grande do Norte, 100% no Acre e 46,2%, em São Paulo. As comparações são entre março de 2019 e o mesmo mês deste ano.
Ainda segundo o levantamento, o número de Medidas Protetivas de Urgência concedidas pelos Tribunais de Justiça também apresenta uma redução considerável: 67,7% no Acre, 32,9% no Pará e 31,5% em São Paulo (os demais estados não disponibilizaram a informação). Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, garante que os crimes seguem ocorrendo e em maior escala. “Essa redução se dá apenas pelo fato de as mulheres não poderem ir até uma delegacia e terem dificuldades de fazer as denúncias com seus agressores por perto.”
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro por “não se preocupar com essa agenda” e apontou outros entraves estruturais. “Todos os países estão aprendendo a lidar com a pandemia, é uma situação sem precedentes. Há outros problemas como a falta de capacidade do serviço público de atender a todos. Se uma mulher agredida for até um posto de saúde, ela talvez não seja atendida pois o local estará lotado de vítimas de Covid-19. Além disso, muitos policiais estão afastados e delegacias estão funcionando em esquema de plantão, o que dificulta o andamento dos processos”.
Álcool, um perigoso combustível para os agressores
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também demonstrou preocupação com a questão ao tratar de uma conhecida “válvula de escape” em tempos de ansiedade e incertezas: o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. A entidade orientou que governos e empresas reduzam a venda de bebidas alcoólicas durante a quarentena, primeiro porque a bebida enfraquece o sistema imunológico – e portanto, deixa seus usuários mais propensos a contrair Covid-19 –, e também porque estimula comportamentos violentos.
A preocupação tem base científica e estatística. “Muito antes da pandemia, os dados já comprovavam a relação entre alcoolismo e agressividade. A intoxicação alcoólica pode levar à instabilidade de humor, à perda do senso crítico, e isso somado ao estresse de uma rotina alterada pelo confinamento obrigatório pode gerar impaciência, impulsividade e terminar em violência”, explica a psicóloga Jaira Freixiela Adamczyk, ex-presidente dos Alcoólicos Anônimos do Brasil.
Apesar de os dados no Brasil apontarem uma tendência de diminuição no consumo total de álcool durante a quarentena – sobretudo devido ao fechamento de bares e restaurantes –, as bebidas seguem sendo vendidas em mercados físicos e virtuais e estão sendo consumidas justamente no local mais propício para as agressões. Complicações financeiras impostas pela quarentena também podem exacerbar comportamentos violentos.
“O álcool pode ser um gatilho para um homem agressivo, mas nunca pode ser apontado como a causa da violência. O homem que bate na mulher põe a culpa na bebida, nas drogas, no desemprego, numa potencial traição, mas nada disso pode servir como justificativa. A violência sempre esteve presente nesse homem, talvez a bebida só lhe dê coragem para fazer algo que gostaria de fazer sóbrio”, afirma a delegada Jamila Ferrari.
Códigos, apps e a importância dos vizinhos
A permanência em tempo integral ao lado do agressor reduz as possibilidades de a mulher realizar uma denúncia, seja na delegacia ou por chamadas telefônicas ou virtuais. Por isso, alguns países adotaram medidas alternativas, como o uso de códigos para pedir socorro. Na Espanha, na França e no Chile, por exemplo, farmácias foram instruídas a avisar autoridades sempre que uma mulher ligar perguntando pela “máscara 19” – na Argentina, o termo é “máscara vermelha”. Ainda não há, no entanto, confirmação sobre os resultados práticos da medida, que exige muita coordenação entre os agentes envolvidos.
No Brasil, não há recomendações do tipo para farmácias, mas manter códigos de socorro com amigas ou parentes é uma boa dica para as mulheres. Há, porém, canais com maior alcance e efetividade, como destaca a promotora Gabriela Manssur, idealizadora de diversos projetos como o Justiceiras, um grupo de WhatsApp que oferece apoio a vítimas de violência doméstica no número (11) 99639-1212.
“Os governos estão começando a participar, mas ainda não é suficiente, deveria haver mais investimentos. Os resultados mais significativos ainda estão nos canais alternativos, por isso lancei o Justiceiras, que em menos de duas semanas já atraiu 1.500 voluntárias inscritas e recebeu mais de 1.000 pedidos de ajuda, dos quais mais de 300 já foram encaminhadas. É um projeto da sociedade civil em parceria com a linha de frente do combate à violência doméstica e que já está ajudando a salvar vidas.”
Trabalhando em defesa das mulheres há cerca de 15 anos, Gabriela Manssur também comanda o Tempo de Despertar, um programa de ressocialização e reflexão de homens que foram denunciados por diversos tipos de violência. “Em sete anos, mais de 700 homens já passaram pelo projeto e apresentaram uma redução da taxa de reincidência de 65% para 2%”, afirma. O projeto fundamentou uma alteração na Lei Maria da Penha, sancionada em 3 de abril, que determina que o homem envolvido em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher deve comparecer a programas de recuperação e reeducação.
Há outras boas alternativas em canais não oficiais de denúncia, como o Mapa do Acolhimento, site que oferece ajuda psicológica ou jurídica de profissionais voluntários ou o app PenhaS, criado pelo Instituto AzMina e batizado em referência à Lei Maria da Penha. Nele, dentre outras formas de auxílio, é possível acionar um “botão de pânico”, que avisará até cinco pessoas conhecidas sobre um caso de urgência, via mensagens SMS.
Outra importante ajuda pode vir das paredes ao lado. “Com todos em casa, os vizinhos ganham um papel importante nesta quarentena. Sempre que alguém escutar barulhos suspeitos, deve ligar para o 190 ou 180. Os vizinhos podem ajudar a salvar vidas”, destaca a delegada Jamila Jorge Ferrari. “É preciso acabar com aquela ideia de que em briga de marido e mulher não se mete a colher, que trata-se de um problema privado.”, completa Samira Bueno.
Segundo pesquisa da Decode Pulse encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento de 431% nas menções no Twitter sobre brigas de casais vizinhos entre os meses de fevereiro e abril. No total, foram analisadas 52.315 interações na rede social. “Mais importante do que denunciar na internet, é chamar imediatamente a polícia”, ressalta Samira. Na última segunda-feira 27, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) lançou uma cartilha didática (clique aqui para ler) para orientar mulheres sobre quais os tipos de violência doméstica (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) e as melhores formas para combatê-los.