Escândalos de corrupção na área da saúde não são, infelizmente, nenhuma novidade no Brasil. Em 2006, alguns leitores devem lembrar, o país já era vítima da Máfia dos Sanguessugas (2006), que desviava verba da compra de ambulâncias para “ajudar” senadores e deputados de partidos como PMDB, PL e PT. Agora, em meio à pandemia de Covid-19, que já infectou 1,7 milhão de pessoas e deixou cerca de 70 000 mortos, a descoberta de esquemas para a compra fraudulenta de equipamentos ganha ares de calamidade pública. Desde abril, operações das polícias Civil e Federal, do Ministério Público e da Controladoria-Geral da União têm acontecido com uma frequência espantosa — em média, mais de três por semana —, jogando luz sobre negócios públicos suspeitos envolvendo respiradores, aparelhos de proteção, máscaras e estruturas de hospitais de campanha, que movimentam uma cifra de 1,5 bilhão de reais e se espalham por pelo menos dezoito estados. Além de dezenas de prefeitos, oito governadores entraram na mira dos investigadores. Três deles, aliás —Wilson Witzel (PSC), do Rio de Janeiro, Wilson Lima (PSC), do Amazonas, e Helder Barbalho (MDB), do Pará —, viraram alvos de inquéritos autorizados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e enfrentam o risco de impeachment.
O ataque em bando das aves de rapina da saúde não é obra do acaso, mas da tradicional mistura de má-fé com oportunidade. Seja na prefeitura de Aroeiras (PB) — onde ocorreu a primeira operação da PF no contexto da Covid-19 — ou no governo do Rio, os esquemas seguem o mesmo modus operandi: aproveitando-se da dispensa de licitação para compras emergenciais e da procura desenfreada por insumos de saúde, lobistas entram em cena para intermediar a venda de produtos com até 300% de superfaturamento. Muitas vezes usam empresas em nome de laranjas, criadas para outras finalidades e sem estrutura para cumprir o exigido. Mesmo assim, conseguem contratos milionários com o poder público. Em alguns casos, as autoridades aceitam até pagar antes de receber as mercadorias. Resultado: entrega de ventiladores inadequados, sem bateria interna ou com falta de peças, como ocorreu no Pará e no Amazonas, ou a não entrega dos produtos, como se deu em Santa Catarina. “São volumes muito altos negociados por uma infinidade de entes num momento de muita demanda e com a flexibilização de mecanismos de controle”, resume o coordenador de pesquisa da ONG Transparência Internacional, Guilherme France. Em outras palavras, na adaptação de um batido jargão, trata-se de juntar a fome com a vontade de roubar.
A reportagem de VEJA teve acesso aos inquéritos que investigam esquemas no Pará e em Santa Catarina. Eles dão um bom retrato do que vem ocorrendo nos estados e municípios. Nos dois processos, figuram com destaque os empresários André Oliveira e Fábio Guasti, já presos, cujos nomes também aparecem em compras suspeitas no Rio e em São Paulo. Filiado ao DEM, Oliveira é vice-presidente do partido no Distrito Federal e segundo suplente do senador Izalci Lucas (PSDB). Já fez parte do grupo político de Rodrigo Maia (DEM-RJ) e frequenta os corredores da Câmara. Em 2007, era considerado o “idealizador” das Vilas Olímpicas no DF e virou secretário de Esporte do governador José Roberto Arruda. Em 2020, passou a atuar como representante da SKN do Brasil Importação e Exportação, que fechou um contrato de 50,4 milhões de reais para a compra de 400 respiradores pelo governo do Pará — no fim, só chegaram 152, com “falhas técnicas e inadequações”, segundo uma perícia. Em depoimento à PF, Oliveira relatou que conhece Helder Barbalho “há dez anos” e que tratou do negócio diretamente com ele por WhatsApp. Em mensagens interceptadas, o empresário chega a cobrar o governador sobre um “contato” para ele “enviar o contrato”. Barbalho responde: “Cadê a proposta?”. Mais adiante, quando percebeu que não era um bom negócio, o emedebista foi enfático: “Você está ganhando uma fortuna”. De fato, estava. A empresa representada por Oliveira recebeu adiantados 25 milhões de reais, o que, nas palavras dele, era uma “exigência necessária para a compra nesse momento de pandemia”. Não precisaria ser nenhum expert para perceber que o negócio corria riscos. Uma checagem simples no Google evitaria problemas. Numa perícia anexa aos autos, é elencada, por exemplo, uma série de reclamações, feitas em um site de defesa do consumidor, contra a SKN pela intermediação da venda de pipoqueiras e fritadeiras elétricas, que vinham sem peças ou quebravam em poucos meses. Aliás, esta é a atividade real da empresa: a venda de eletroeletrônicos.
Um perfil semelhante tem a outra peça-chave nos esquemas. Filiado ao PSC, Fábio Guasti se apresentava nas redes sociais como um médico-empresário bem-sucedido nos ramos de serviços médicos, shopping centers e cartões de alimentação. Mas o que chamou mesmo a atenção das autoridades foram os milionários contratos celebrados com as prefeituras de Guarulhos, Florianópolis e São José (SC) e o governo do Pará. Segundo o Ministério Público, ele teve papel de destaque na intermediação na venda de 200 respiradores por 33 milhões de reais pela empresa Veigamed Material Médico ao governo catarinense. Em mensagens interceptadas, o lobista aparece pressionando servidores a liberar os pagamentos: “Vocês têm que ter velocidade”. Os investigadores descobriram que a sede da Veigamed fica em um endereço residencial em Nilópolis, na Baixada Fluminense, onde funcionam outras duas empresas. A proprietária seria uma mulher que trabalhava como motorista de ônibus — e, obviamente, teria um patrimônio incompatível com uma companhia que movimenta milhões de reais. Outra pessoa que se identificava como representante da firma era o presidente da Câmara de São João de Meriti (RJ), Davi Perini Vermelho (DEM), que foi preso e em cujo endereço foram encontrados 300 000 reais em espécie. Para trazer os respiradores da China, a Veigamed contrataria a Cima Industries, com sede no Panamá, país conhecido por ser um paraíso fiscal. O representante da empresa seria Samuel Rodovalho, filho do bispo Robson Rodovalho, próximo à bancada evangélica. Em conversa apreendida, Samuel fala em “comissão” de 3 milhões de reais para fechar negócio.
Além dos lamentáveis problemas que provocaram no enfrentamento de uma pandemia, os esquemas de fraude na saúde deixaram alguns governadores em maus lençóis. Uma dupla de Wilsons passa, por sinal, por maus bocados. Witzel, no Rio, e Lima, no Amazonas, tornaram-se alvo de processos de impeachment na esteira das operações. No caso do político fluminense, até a primeira-dama, Helena Witzel, sofreu uma busca e apreensão em seu escritório de advocacia após ser acusada de receber 15 000 reais mensais de uma firma ligada ao empresário Mario Peixoto, preso sob a acusação de comandar um esquema de corrupção na Secretaria da Saúde desde o governo de Sérgio Cabral. Já o amazonense está tendo de explicar por que comprou 28 respiradores de uma adega de vinhos, que havia adquirido os aparelhos por 2,4 milhões de reais e, no mesmo dia, revendido ao estado por 2,976 milhões. A PF chegou a pedir a prisão do governador, mas o STJ rejeitou. Vários secretários também caíram nos estados. O caso mais rumoroso foi o do titular da Saúde do Pará, Alberto Beltrame, que foi um aliado de primeira hora do então ministro Luiz Henrique Mandetta e assumiu o protagonismo nas críticas dos estados ao comportamento errático do governo Jair Bolsonaro no combate à pandemia. A PF encontrou mais de 300 obras de arte em seu tríplex avaliadas em 20 milhões de reais — ele rebate todas as acusações e diz que o patrimônio é legal. Quem dera existisse também uma vacina contra a corrupção.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695