Tropeços no caso de Mossoró impõem primeiros desafios à gestão Lewandowski
Nos bastidores, a crise provocada pela fuga do presídio reacendeu preocupações relacionadas ao perfil mais jurídico do que político do ex-ministro do STF
Ricardo Lewandowski ainda se acomodava na cadeira de ministro da Justiça e Segurança Pública quando foi submetido ao primeiro teste de fogo. “Fuga de presídio de segurança máxima?”, indagou ele, pouco depois das 8 horas da Quarta-Feira de Cinzas, quando integrantes da secretaria-executiva da pasta avisaram, por telefone, que o impensável havia acontecido. A debandada de dois detentos da penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, levou o ex-juiz a experimentar, com apenas seis dias úteis de trabalho, a pressão política do cargo e o tamanho do desafio de enfrentamento da criminalidade. O constrangimento de estar à frente da pasta no momento em que, pela primeira vez na história, ocorreu um episódio desses numa cadeia do tipo, cresceu com a dificuldade em recapturar os bandidos. O esforço envolve cerca de 600 homens, incluindo 111 policiais da Força Nacional, deslocados às pressas para ajudar na caçada. Até o final da tarde da última quinta, 29, no entanto, as buscas ainda se mostravam infrutíferas.
Pego de surpreso pela notícia, o ministro foi rápido em definir seu plano de resposta. Em menos de duas horas, Lewandowski já havia acionado os diretores da Polícia Federal e da Polícia Federal Rodoviária, negociado ajuda estadual com a governadora Fátima Bezerra (PT), decidido afastar o diretor da penitenciária, suspendido visitas e banhos de sol em todo o sistema e definido que enviaria naquele mesmo dia uma equipe comandada pelo secretário de Políticas Penais, André Garcia, ao local. Para tê-lo à frente da força-tarefa, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal teve de negociar uma liberação às pressas com a governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSDB). É que o escolhido para comandar a área estava em férias e preso ao cargo de procurador do estado naquele momento.
Até aqui, Lewandowski tem evitado apontar culpados, mas é evidente que ele herdou uma bomba-relógio que estourou no seu colo poucos dias depois de ter assumido o Ministério da Justiça. Relatórios elaborados em gestões anteriores já indicavam falhas de segurança no presídio de Mossoró ao menos desde 2019, quando o chefe da pasta era o hoje senador Sergio Moro (União-PR). Naquele mesmo ano, um episódio mostrou que já havia sinais preocupantes de problemas. Na ocasião, um detento do PCC, José de Arimatéia, conhecido como Pequeno, conseguiu roubar a escopeta de um guarda durante o banho de sol. A arma não teria disparado e, por isso, foi possível controlá-lo. Não houve uma reprimenda à altura para a tentativa de rebelião e não se tem imagem do fato, porque parte do sistema de monitoramento já não funcionava. Hoje, das 192 câmeras do circuito interno, 124 encontram-se inativas, um vexame, considerando-se que a construção de presídios de segurança máxima no Brasil foi um projeto vendido pelas autoridades como um passo ao estado de arte em matéria de segurança carcerária.
O atual governo federal, é preciso ressaltar, também ignorou a situação. Em agosto passado, novo alerta enviado à equipe do então ministro Flávio Dino antecipou o motivo da atual crise: o documento afirmava que, devido a falhas estruturais, presos poderiam escapar pelo espaço da luminária. “Dica” que parece ter sido seguida à risca por Rogério da Silva Mendonça, conhecido como Tatu, e Deibson Cabral Nascimento, o Deisinho, ambos integrantes do Comando Vermelho condenados a mais de setenta anos, cada, de prisão por tráfico, organização criminosa, assalto e homicídio.
Como se não bastassem os problemas identificados e não resolvidos de forma urgente no sistema penitenciário — e na área da segurança pública no país como um todo —, a posse de Lewandowski não foi acompanhada de uma passagem de bastão detalhada justamente nessas áreas mais sensíveis. O antecessor de Garcia no comando das políticas penais, Rafael Velasco, foi avisado na véspera que deixaria o posto, sem tempo para preparar a documentação necessária para a transição. Já o novo secretário nacional de Segurança Pública, Mario Sarrubbo, segue como procurador-geral de Justiça de São Paulo até o próximo dia 4. Ele assumirá exatos vinte dias após a fuga de Mossoró.
Seja pelas falhas no processo de transição (algo que a gestão atual nega, apesar das evidências), seja pela demora na captura dos presos, as medidas adotadas viraram alvo de críticas por quem acompanha de perto a gestão da crise. A lista de apontamentos é extensa: vazamento excessivo de informações sobre o roteiro das buscas, demora para a chegada das forças táticas da PF e PRF (48 horas depois) e dos agentes da Força Nacional (nove dias após a fuga), falta de conhecimento sobre a situação de cada uma das cinco penitenciárias federais e ausência de respostas sobre eventuais facilitadores da fuga. “Na sexta, dia 23, os fugitivos deixaram o sítio onde ficaram escondidos por oito dias após a informação de que a polícia iria até o local vazar durante uma blitz. Isso atrapalhou tudo”, conta um dos envolvidos na operação. Segundo apurou a reportagem de VEJA, ainda deu tempo de a dupla sair do esconderijo carregando dúzias de ovos cozidos para enfrentar os dias seguintes de incertezas.
Ciente do desafio, Lewandowski tem cobrado a equipe e, obviamente, demonstra preocupação com as dificuldades da captura. Sabe-se que a região é complexa e difícil para a realização de um cerco policial mais efetivo. O entorno do ministro lembra ainda que até forças dos Estados Unidos sofreram em situações semelhantes, mesmo colocando em campo um aparato muito maior. Diferentemente do presidente Lula, que declarou acreditar ter havido conivência por parte de “alguém do sistema”, o ministro opta por destacar o direito à presunção de inocência em falas cuidadosamente calculadas para não se indispor com policiais penitenciários nem demonstrar ruídos na equipe recém-formada ou mesmo no grupo que o antecedeu.
Apesar disso, nos bastidores, o caso de Mossoró reacendeu preocupações relacionadas ao perfil mais jurídico do que político de Lewandowski. Nome de grife, escolhido a dedo pelo presidente Lula, cabe a ele atualmente dar uma resposta à sociedade diante da crescente crise de segurança vivida no país. Mas, para alguns críticos, apesar do currículo de sucesso, o ex-ministro do Supremo carece de experiência na área e ainda formou uma equipe com procuradores e advogados com as mesmas características. “São pessoas acostumadas a debater o país em salas com ar-condicionado ambientadas com música clássica. O problema é que lidar com a segurança pública exige carcaça. Aqui é confusão, baile funk todo dia”, diz, cheio de veneno, um servidor antigo da pasta.
As falas oficiais também não ajudaram na percepção da população. No dia seguinte à fuga, Lewandowski chegou a justificar o episódio pelo calendário. “Ocorreu na passagem da terça de Carnaval para a Quarta de Cinzas, quando, eventualmente, as pessoas estavam mais relaxadas”, declarou o ministro que, imediatamente, virou alvo nas redes por supostamente minimizar o ocorrido justamente na área considerada mais sensível para o governo Lula. Pesquisas apresentadas ao presidente mostraram que a crise de segurança no país afeta a sua popularidade, ainda que grande parte da responsabilidade tenha que ser dividida com os estados.
Embora algumas falhas tenham acontecido, colocar a culpa em Lewandowski do que ocorreu em Mossoró não é justo. A recente crise gerada pela fuga de um presídio de segurança máxima tem relação direta com a articulação atual das facções de bandidos — e não foi o atual ministro quem criou essa situação. Há suspeitas de que o episódio teve a cumplicidade de agentes do presídio e que os foragidos contaram com apoio das quadrilhas para se manterem distantes dos braços dos policiais. Ao assumir a pasta, Lewandowski citou que colocaria grande energia justamente no combate a esse crime organizado. Cumprir essa promessa, como mostrou o teste de fogo de Mossoró, vai exigir, sem nenhuma dúvida, muito esforço e organização — e a prisão dos fugitivos é uma obrigação.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882