Um novo homem: o que faz os jovens rejeitarem cada vez mais o machismo
Pais modernos, sociedade mais aberta e os rigores da pandemia, sempre ela, são alguns dos motivos para a bem-vinda mudança
Reflexão na paternidade
“Uma semana depois de terminar um relacionamento soube que minha ex-namorada estava grávida. Junto com o susto veio uma reflexão sobre o meu papel de pai. Aboli as piadas sexistas e tento ensinar ao meu filho Lorenzo que não tem isso de coisa de menino e coisa de menina.”
Yuri Siqueira, 30 anos, consultor
Vinha do berço. Antes mesmo de falar ou entender o mundo ao seu redor, bebês do sexo masculino são expostos a brincadeiras físicas e expressões relacionadas a força e competição, como “garotão do papai” e “campeão”, enquanto às meninas são reservadas manifestações de delicadeza — “florzinha”, “bonequinha” — e aberta afetividade. Esse tipo de comportamento, comum e até automático, tem reflexos prolongados e foi capaz de imobilizar durante séculos os homens e as mulheres dentro de compartimentos impenetráveis e imutáveis. Por serem relegadas a um papel de inferioridade na hierarquia doméstica, as mulheres foram as primeiras a se rebelar, chutar a porta e dar voz a suas demandas. Os homens seguiram impávidos na posição social que ocupam desde o raiar da humanidade: fortões, durões, provedores do sustento e do bem-estar da família.
Em movimento que não para de se expandir, as novas gerações começam a se afastar, talvez definitivamente, do modelo ancestral de masculinidade. É uma extraordinária novidade. É um fenômeno empurrado por pais e mães que questionam estereótipos, por um nítido avanço da sociedade na aceitação da diversidade e, como não podia deixar de ser, pelos hábitos da pandemia — o grande transformador universal. A revolução se inicia dentro de casa (e casa ganhou nova qualificação em tempos de isolamento social), onde meninos vão sendo acostumados a lavar a louça, arrumar a própria cama e guardar suas roupas, enquanto veem a mãe trabalhar tanto ou mais do que o pai. Segue no ambiente corporativo, no qual assédio se tornou uma espada sobre a cabeça deles e pensa-se três vezes antes de fazer alguma piadinha. Aos poucos, foi-se estabelecendo no jovem universo masculino uma espécie de revolução silenciosa, que com frequência deságua em estranhamentos e conflitos de gerações.
“Passei a questionar por que não tinha com meu pai e meu irmão a mesma relação franca e carinhosa que estabeleci com pessoas do sexo feminino na minha família”, diz o advogado Rodrigo Mota, 24 anos, que hoje distribui bem mais amplamente os abraços e os “eu te amo” que já chegou a represar. “Durante séculos fomos educados para acreditar que o certo é ser machista. Entender que outros modelos de masculinidade são possíveis é libertador”, afirma Luciano Ramos, consultor de programas da Promundo, uma organização que trabalha com jovens pais.
Como em tudo no mundo atual, a presença de celebridades expondo nas redes sociais sua cruzada antimachista contribuiu para dar visibilidade ao movimento. O ator Lázaro Ramos foi dos primeiros a condenar publicamente a “masculinidade tóxica”. Mais recentemente, Rodrigo Simas declarou que “todos os dias tento desconstruir o machismo na minha relação, nos meus julgamentos e nos meus pensamentos”. “Os homens têm muito a ganhar se aprenderem a ser mais, digamos, femininos”, afirma o ator carioca Marcello Melo Jr., 33 anos. A nova atitude dos jovens em relação à própria masculinidade está expressa em uma vasta pesquisa conduzida pela empresa SurveyMonkey com homens nos Estados Unidos, na qual ficou evidente que o típico macho alfa, viril, durão e impermeável aos sentimentos, está em baixa.
O exemplo feminino
“Cresci cercado de mulheres e aprendi com elas noções de respeito ao próximo e de diversidade. Os homens também podem e devem ser empáticos, carinhosos e, por que não?, vaidosos.”
Marcello Melo Jr., 33 anos, ator
Em seu lugar, começa a surgir um homem disposto a externar afeto com parentes e amigos, a dividir as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos e a tratar as colegas de trabalho sem nenhuma distinção de gênero. Para 46% dos entrevistados, ser visto pelas pessoas à sua volta como “masculino” é “nada” ou “não tão importante”. A maioria — 63% — disse que abraça e os amigos do mesmo sexo e faz carinho neles. E, sinal mais nítido dos novos tempos, 45% admitiram que choram com alguma frequência. Os participantes do levantamento se mostraram desconfortáveis com o peso do machismo sobre seus ombros: 60% consideram que a pressão imposta pela sociedade não é saudável (nas faixas ainda mais novas, o número sobe para 70%). “Há uma percepção da masculinidade nunca observada antes. Os jovens estão tendo liberdade e oportunidade inéditas de falar e refletir sobre o assunto”, ressalta Tony Porter, um dos maiores especialistas no tema, CEO da A Call To Men, organização americana que atua para desenvolver masculinidade saudável entre garotos.
Na pesquisa, o pai é apontado por 64% dos entrevistados como responsável por ensinar “o que é ser um bom homem”, motivo de angústia para quem vai viver o desafio de criar uma criança — tanto que as buscas com a frase “como ser um bom pai” no Google aumentaram 50% no ano passado em relação a 2019. O militar Matheus Mendonça, 19 anos, diz que não foi fácil aprender a ser pai da menina Ariel, hoje com 2 anos. “Minha criação se deu em um ambiente muito masculino. O relacionamento com uma feminista me fez entender o impacto do machismo na sociedade e quero que a minha filha saiba se defender de tudo isso”, diz.
A paternidade, ainda mais inesperada, foi igualmente o divisor de águas que fez o consultor de viagens Yuri Siqueira, 30 anos, repensar posturas que lhe foram inculcadas ao longo da vida. Uma ex-namorada descobriu que estava grávida uma semana depois de terminarem o relacionamento e, no convívio com o filho, Siqueira procura adotar atitudes diferentes das de sua infância. “Fui descobrindo diversos aspectos machistas que, para mim, eram coisa normal, como classificar as brincadeiras em para menino e para menina. Quis mudar para não perpetuar preconceitos, porque eu sou um espelho para meu filho”, enfatiza o pai de Lorenzo, hoje com 5 anos, com quem convive quinze dias por mês, no regime de guarda compartilhada.
Beijos e abraços
“Na terapia, comecei a me perguntar por que não conseguia ter com meu pai e meu irmão uma relação tão sincera e afetuosa quanto a que mantenho com as pessoas do sexo feminino em minha família. Hoje beijo, abraço e falo ‘te amo’ para todos, inclusive para os amigos. Essa mudança foi uma libertação para mim.”
Rodrigo Mota, 24 anos, advogado
Na seara dos relacionamentos amorosos e da sexualidade, a falta de diálogo e as regras preestabelecidas são constantes das quais muitos jovens estão lutando para se libertar. “Nunca me senti à vontade para falar sobre isso e acabava fazendo coisas que não queria. Às vezes não estava com vontade de transar, mas tinha aquela obrigação, por causa da norma de que o homem tem de ser o pegador”, diz o estudante Victor Rugiero, de 24 anos. Na opinião dessa turma que quer mudança, uma das causas do atraso na busca da nova masculinidade são as performances ensaiadas dos filmes pornô e, em geral, a imagem vendida pela indústria do sexo, disponível à vontade na internet. “Meninos com 9, 10, 11 anos têm acesso fácil à pornografia e aprendem que precisam ser dominantes e agressivos”, alerta Claudio Serva, fundador do Prazerele, um instituto que organiza workshops e rodas de conversas sobre o tema. “Historicamente, a sexualidade masculina está relacionada à ideia de potência”, analisa Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo. “Hoje, porém, cada vez mais homens percebem que a chave para um relacionamento bem-sucedido está na capacidade de sentir e proporcionar prazer à parceira.”
No campo das relações domésticas, a pandemia fez com que muitos homens, pela primeira vez na vida, prestassem atenção à rotina feminina de misturar carreira com tarefas da casa e cuidados com os filhos — e dessem passos para compartilhar o trabalho. Em pesquisa de 2020 encomendada pelo Instituto Rede Nossa São Paulo, 52% dos homens afirmam agora dividir os perrengues do dia a dia com as companheiras e trocaram o “dar uma mãozinha” por participação de fato. Na questão filhos, 37% dizem que repartem a responsabilidade, contra 12% dois anos antes (se bem que, verdade seja dita, outros estudos mostram que, nesses pontos, a visão deles e delas difere). “Não cabe mais no mundo contemporâneo o antiquado comportamento patriarcal”, lembra o consultor Luciano Ramos, da organização Promundo. Se tudo der certo, os homens das novas gerações não precisarão de alguém que lhes chame a atenção para seu papel dentro — e fora — de casa.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733