Viúva do motorista de Marielle comemora vitórias do filho: “Ele é único”
"Quero que o Arthur seja um adulto pleno, que ande, fale, estude e trabalhe. É para isso que eu vivo", diz Agatha Reis
Perder o Anderson foi devastador. Fiquei viúva aos 27 anos, mãe de um filho de quase 2 anos com uma condição genética rara, que exige muitos cuidados. Demorei meses para me reerguer. Anderson sempre quis ter filhos, me perturbava com isso desde os tempos de namoro. Engravidei em setembro de 2015. Quando soubemos que era menino, o Anderson ficou tão emocionado que quase desmaiou. Meses antes, descobrimos que o Arthur tinha uma malformação no abdômen, e aí começou a nossa saga. Fiz muitos exames, alguns invasivos, e ele foi diagnosticado com onfalocele, que são falhas na parede abdominal. Meses depois, em outro ultrassom, três alterações tão graves foram encontradas que o parto foi adiantado para o dia seguinte. Ele nasceu um mês antes do previsto, em 6 de maio de 2016, com apenas 34 centímetros e com os órgãos expostos por causa da condição. Lembro da correria da equipe médica e da preocupação com que ele tivesse uma parada cardíaca. Mas Arthur nasceu gritando forte e o colocaram pertinho de mim. Pude falar um pouquinho com ele. Em seguida, o levaram para a UTI. Foram 28 dias de angústia, de altos e baixos, muitos baixos. Fizeram uma cirurgia longa para colocar os órgãos dele para dentro. Lutamos muito pela alta. Um médico chegou a me perguntar se eu queria mesmo levá-lo para casa.
Quando o Anderson foi assassinado, senti um vazio completo. Meu cérebro não conseguia processar como seria nossa vida dali em diante. As decisões eram sempre conjuntas, principalmente em relação ao Arthur, e isso me dava segurança. A ausência dele era tão sentida que, tudo o que eu ia fazer, me perguntava se o Anderson faria também. Outra coisa que a viuvez me trouxe foi o medo da minha própria morte. Eu me pergunto quem iria cuidar do meu filho, quem iria fazer as coisas que eu faço, do jeito que eu quero. Voltei a morar com a minha mãe por um ano. Dependi muito da minha família para cuidar dele enquanto eu ia trabalhar. Sou funcionária pública e levamos uma vida apertada, porque sustento todas as despesas. Até hoje o Estado não me indenizou pelo assassinato do Anderson. Além disso, preciso ir ao médico sozinha, dirigir sozinha, assumir uma responsabilidade enorme que não tenho com quem dividir. Arthur já passou por cinco cirurgias e em uma delas, seis meses depois da morte do Anderson, quase o perdi. Mas ele resistiu. A gente brinca na família que é como o Wolverine, que se regenera. Também tem autismo e uma miopia grande, mas compensa tudo isso com uma força enorme, uma vontade de viver muito intensa.
A fisioterapia começou quando Arthur ainda era bebê de colo e tinha muita dificuldade de segurar a cabecinha. Quando Anderson morreu, faltava pouco para ele fazer 2 anos e ainda não andava. Colocávamos no andador, tentávamos estimular os movimentos. Só começou no ano passado, com 4 anos, quando veio a pandemia, fiquei em casa e tive mais tempo para me dedicar a ele. Não esqueço a primeira vez que andou, do sofá para a cadeira onde eu estava sentada. Não estava olhando na hora e me assustei com um vulto perto de mim. Era o Arthur. Toquei a campainha da vizinha e pedi para filmar. Coloquei uma música, dancei com ele, que ria para mim, vendo quanto eu estava feliz. Fiz andar várias vezes, chamava e ele vinha. Agora aprendeu a subir escada e começa a descer também. Às vezes abre a porta e tenta fugir da fisioterapia. É uma criança muito brincalhona. A parte de falar ainda é complicada. A primeira palavra foi “pai”, para o Anderson, quando ele estava vivo. Depois veio “mamãe”. Também já falou “neném”, “banana” e “caraca”. Eu vou seguindo na tentativa e erro. O Arthur é único. Quero que ele seja um adulto pleno, que ande, fale, estude e trabalhe. É para isso que eu vivo.
Agatha Reis em depoimento dado a Marina Lang
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762