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Volta ao passado: ideia absurda da cura gay ganha vigor com influencers

A ideia de que ser gay é um mal, abraçada pela medicina séculos atrás, circula com força renovada nas redes sociais

Por Duda Monteiro de Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mafê Firpo Atualizado em 3 jun 2024, 16h57 - Publicado em 10 Maio 2024, 06h00

No século XIX, a medicina, embebida de dogmas religiosos, começou a se interessar pela homossexualidade, que desde tempos medievais residia no escaninho dos pecados. Foi aí que surgiu a ideia de que se tratava de uma anomalia, doença que deveria ser bem cuidada. Décadas depois, apareceria a lobotomia, uma terapia à base de choques que se propunha a curar os indivíduos que sofriam da tal enfermidade. A prática, sem respaldo científico e mirando um objetivo calcado na mais pura expressão do preconceito, acabaria proibida em meados do século XX. Mas apenas em 1990 o assunto deixou o rol dos distúrbios da mente elencados pela Organização Mundial da Saúde. Isso, porém, não eliminou de vez a convicção de uma ala da sociedade, imbuída de intolerância e com os pés fincados no atraso, de que pessoas não hétero demandam tratamento. Neste caldo é que fervilha o conceito da “cura gay”, que circula com vigor renovado nas redes sociais, caixas de ressonância dessa aberração alimentada pelo bolsonarismo.

VIVER PARA SUBLIMAR - O influencer Caleb Rinavi, 39 anos, viveu dois meses confinado no quarto depois que decidiu não mais “pecar”. Homossexual assumido, deixou de se relacionar com homens e, nas redes, agita essa bandeira. “Acredito que meu desejo esteja aos poucos se transformando. Isso é possível”, diz.
VIVER PARA SUBLIMAR – O influencer Caleb Rinavi, 39 anos, viveu dois meses confinado no quarto depois que decidiu não mais “pecar”. Homossexual assumido, deixou de se relacionar com homens e, nas redes, agita essa bandeira. “Acredito que meu desejo esteja aos poucos se transformando. Isso é possível”, diz. (//Arquivo pessoal)

Até bem pouco tempo atrás, as tentativas de conversão da turma LGBTQIA+ se limitavam a igrejas e consultórios, onde ainda vigora uma pregação contra “a presença do demônio no corpo” e cabe até exorcismo para a libertação dessas pessoas, que assim mudariam sua “doentia” orientação sexual. Pois hoje o ideário ganha com força os holofotes virtuais, dentro e fora do Brasil, alavancado por um grupo de influencers que fazem seu receituário para a cura ecoar na casa dos milhões de views. A principal tática são relatos de sua própria trajetória. Jovens frequentadores de denominações sobretudo evangélicas — a maioria de igrejas como Universal e Assembleia de Deus —, quase todos encararam um processo de “cura” e empunham hoje a bandeira de que o caminho lhes trouxe paz de espírito, embora envolva sofrimento. Muitos terminam vivendo disso, já que atraem publicidade e começam a faturar.

 

A distorcida filosofia da cura gay passou por ajustes recentes, o que fica claro ao observar os perfis desses autointitulados influencers da fé. “Não deixei de ser homossexual, mas percebo que já me porto de forma diferente. Acredito que, um dia, Deus vai fazer com que me apaixone por uma mulher”, diz o pernambucano Mikaelyson de Lima, 22 anos, que contabiliza 100 000 seguidores. Ele e os outros dessa safra entendem ser gay não mais como uma doença stricto sensu, mas como “tendência humana” que deve ser sufocada. Ou seja: mesmo que com todas as tentativas nada mude, a pecaminosa sexualidade não pode ser exercida sob nenhuma hipótese. No melhor cenário, acreditam, a abstinência os conduzirá à condição de heterossexuais. O passo a passo da tão almejada conversão de Mikaelyson é exibido em tempo real nas redes, onde ele mostra um guarda-roupas mais sisudo e explica como vem se afastando de certos amigos e de uma rotina que classifica como mundana.

PROJETO “CURA GAY” - A estudante de psicologia Karen Santana, 30 anos, não apenas prega nas redes, como promove encontros dirigidos a pessoas em busca da chamada conversão sexual. “Gostava de mulheres e cresci sabendo que isso era errado. Por isso, luto o tempo todo contra o desejo”, afirma.
PROJETO “CURA GAY” – A estudante de psicologia Karen Santana, 30 anos, não apenas prega nas redes, como promove encontros dirigidos a pessoas em busca da chamada conversão sexual. “Gostava de mulheres e cresci sabendo que isso era errado. Por isso, luto o tempo todo contra o desejo”, afirma. (//Arquivo pessoal)

Na lista de procedimentos defendidos por esses influencers, entram retiros, isolamento social, memorização de textos bíblicos e até as chamadas sessões de desobsessão, nas quais a conversa é sobre “tirar o pecado da cabeça”. Uma parcela deles chega a intercalar a internet com ações presenciais, como faz a escritora Karen Santana, 30 anos, autora de O Lado Obscuro do Colorido. Ela organiza um projeto de leituras de trechos da Bíblia que condenam a homossexualidade e sugere o jejum como trilha para a purificação. Na igreja que frequenta no Rio de Janeiro, da Assembleia de Deus, agarrou-se à linha de “resistir às tentações” e, assumidamente lésbica, abriu mão dos relacionamentos com mulheres após anos de muitos retiros e preces. “Atualmente, consigo gostar de homens e até casei com um”, relata.

PREGAÇÃO - Ritual de “cura” em uma igreja: a distorcida crença de que a fé livra pessoas da homossexualidade
PREGAÇÃO - Ritual de “cura” em uma igreja: a distorcida crença de que a fé livra pessoas da homossexualidade (istock/Getty Images)

Do ponto de vista científico, é mais do que comprovado que represar desejos e negar a própria essência pode se desdobrar em uma série de severos danos à saúde mental, trazendo ansiedade e uma depressão que não raro se aprofunda. “Quem diz ter sido curado está, na verdade, sublimando a sua orientação e, desse modo, não é possível alcançar um estado de espírito sereno e feliz”, obser­va o pastor de viés progressista e deputado federal Henrique Vieira (PSOL-­RJ), que é também cientista social e está às voltas com um mergulho acadêmico no sombrio universo da cura gay. Entre os estudiosos sérios da mente, a prática é repudiada sob um argumento fundamental: “É perverso fazer alguém negar a própria existência por meio de um exercício permanente de culpa”, resume Pedro Paulo Bicalho, presidente do Conselho Federal de Psicologia, enfatizando a violência embutida na iniciativa.

Uma pesquisa nacional que ouviu indivíduos que embarcaram na cura gay, feita pelas organizações Matizes e All Out, mostra o quão disseminada está a prática para além das igrejas — psicólogos, pediatras, coaches e terapeutas alternativos são apontados como vetores do pânico moral contra pessoas LGBTQIA+. Entre os entrevistados, 55% declaram ter sido forçados por pais ou até pela escola a procurar ajuda externa para “se tornar heterossexuais”, a maior parte até os 17 anos. “O discurso de querer mudar o outro para vê-lo bem é muito forte e envolve um perigoso preconceito, o de que é preciso se adequar a uma norma vista como a correta”, pontua o antropólogo Lucas Bulgarelli, diretor-executivo do Matizes.

TRILHA DOLOROSA - Depois de muita oração em uma igreja da Assembleia de Deus, Mikaelyson de Lima, 22 anos, parou de ir a festas e de ouvir músicas ditas mundanas. “Ainda tenho desejos homossexuais, mas não boto mais em prática”, diz ele, que acumula fiéis seguidores.
TRILHA DOLOROSA – Depois de muita oração em uma igreja da Assembleia de Deus, Mikaelyson de Lima, 22 anos, parou de ir a festas e de ouvir músicas ditas mundanas. “Ainda tenho desejos homossexuais, mas não boto mais em prática”, diz ele, que acumula fiéis seguidores. (//Arquivo pessoal)

O processo é envolto em dor, o que mesmo os defensores da prática reconhecem. “Minha família não me perdoava por ser gay e eu não me perdoava por decepcioná-los”, lembra o capixaba Caleb Rinavi, 39 anos, que passou dois meses trancado em seu quarto até decidir que não mais se relacionaria com homens. Dono de um perfil em que fala de tudo a que renunciou, ele, que não para de acumular seguidores, admite: “Vivi um luto por jogar fora a minha história”. Muita gente que já percorreu a mesma estrada, movida pela ideia de que no final encontraria a tal felicidade, acabou voltando atrás e se sente muito bem com a decisão. “Cheguei a fazer jejum, exorcismos, retiro e até morei em um ministério pentecostal, tamanho o remorso que sentia por ser gay”, desabafa o psicólogo Héder Bello, 37 anos. Num dado momento, ele percebeu o quanto se torturava e desistiu. “Encontrei enfim minha liberdade”, diz. Não existe bem mais valioso.

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Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892

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