A extraordinária investigação do cérebro de Eder Jofre
A família do pugilista doou o cérebro para que ele seja dissecado. É um passo para a identificação dos danos provocados pelos socos do boxe
Em junho de 2014, uma reportagem de VEJA revelou que Eder Jofre, o maior boxeador brasileiro de todos os tempos, sofria de encefalopatia traumática crônica — originalmente conhecida no meio científico como “demência pugilística” — e não de Alzheimer, como se imaginava até então. A descoberta, feita a partir de uma bateria de exames supervisionados pelo neurologista Renato Anghinah, representou uma mudança de tratamento e de sobrevida digna ao campeão. Com o diagnóstico, Anghinah retirou os medicamentos que Jofre tomava contra o suposto Alzheimer, e que o deixavam prostrado, e lhe indicou substâncias afeitas a estimular os receptores de dopamina. Depois, prescreveu remédios à base de canabidiol, de modo a reduzir os episódios de agitação noturna.
Jofre morreu em 2 de outubro, aos 86 anos, de sepse urinária e insuficiência renal aguda. Ele estava internado desde o início do ano com um quadro de pneumonia. A VEJA, há oito anos, os filhos de Jofre se comprometeram a doar o cérebro do pai para estudos mais aprofundados, e foi o que aconteceu. É como se o esportista tivesse uma segunda vida, destinada a ajudar a ciência, em um movimento a um só tempo ético e histórico. “A contribuição de Jofre para a medicina é fundamental e comovente”, diz Anghinah. Lembre-se de que nem mesmo o fenomenal Muhammad Ali (1942-2016), que em vida lutou pelos direitos civis e contra o racismo, teve a grandeza do brasileiro. O americano, que sofria de Parkinson, chegou a ser sondado por reputados centros de estudo, mas rechaçou a ideia de oferecer seu legado médico.
Jofre foi cremado. Seu cérebro — uma massa de pouco mais de 1 quilo — foi inicialmente acondicionado em uma embalagem com gelo-seco e depois endurecido para conservação. Ele está agora no Gerolab, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o maior banco de cérebros da América Latina. O trabalho tem o apoio da Concussion Legacy Foundation, criada por um ex-atleta do futebol americano e um reputado neurocirurgião. Ao longo dos próximos seis meses, a massa cinzenta será cuidadosamente retalhada em lâminas microscópicas pela equipe da neuropatologista Roberta Diehl. O objetivo: detectar, minuciosamente, os danos provocados por choques sucessivos. Apesar dos extraordinários recursos tecnológicos de análise por imagem, o estudo mais preciso da encefalopatia crônica só pode ser feito depois de exames anatomopatológicos, a partir da dissecção do cérebro.
A família Jofre repetiu o gesto dos filhos e da ex-mulher do zagueiro Hilderaldo Luís Bellini (1930-2014), o vascaíno que ergueu a Jules Rimet pela primeira vez, na Copa do Mundo de 1958. Havia a hipótese de que as cabeçadas na bola e sobretudo o contato com o crânio dos adversários pudessem provocar estragos — e foi o que constataram os exames depois de sua morte. Bellini também sofria de encefalopatia crônica, caminho para problemas cognitivos e de memória. Não por acaso, apoiada em estudos similares realizados nos Estados Unidos, a International Football Association Board (Ifab), entidade que estabelece as regras do futebol, enviou a confederações nacionais, em agosto, uma recomendação para que jogadores das categorias de base de até 12 anos sejam proibidos de cabecear a bola mesmo em treinos. A mudança segue recomendações médicas a fim de reduzir as concussões e lesões cerebrais.
A investigação do cérebro de Jofre é extraordinária, dado vir de um esportista que, ao longo de pelo menos quinze anos, sofreu pancadas — embora ele batesse muito mais do que apanhasse, em uma carreira com títulos mundiais em duas categorias, a dos galos e pena, com 81 lutas, 75 vitórias, 52 nocautes e apenas duas derrotas, por pontos. A medicina explica o que acontece com um cérebro em movimento: a cada pancada, o órgão chacoalha dentro da caixa craniana, e é inevitável que se choque contra suas paredes. Nesse vaivém, os neurônios sofrem rupturas. Como consequência, ocorre a liberação da proteína tau — em quantidades normais, ela é responsável pela boa estrutura dos neurônios. Com os socos, volumes exponenciais da proteína se acumulam no cérebro e viram veneno. A tau é liberada duas horas depois do trauma e fica lá por três meses, no mínimo. Ao longo da carreira, a caixa craniana de Jofre foi inundada por um mar tóxico de proteína tau. A nova etapa de investigação pode vir a confirmar o que os exames de imagem constataram.
As revelações finais do cérebro do pugilista podem fornecer o argumento decisivo para uma proposta que ganha força: a de que boxeadores profissionais lutem com protetores, como acontecia nas Olimpíadas. É uma maneira de celebrar a beleza da chamada nobre arte, subtraindo-a de sua malignidade. “A generosidade de meu pai, que sempre defendeu a doação, pode ser atalho para um futuro mais saudável do esporte”, diz Marcel. “É decisivo que no boxe se acompanhe a saúde dos atletas, com cuidado, em nome da vida.” O derradeiro gesto de Eder Jofre, ao ter seu cérebro oferecido para a academia, o faz ainda maior, para além da genialidade dentro e fora do ringue do eterno Galo de Ouro.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812