A inteligência artificial transforma a maneira como falamos
Na pré-história, a agricultura introduziu novos sons e moldou a linguagem humana. Agora, é a revolução digital que pode transformar nossa fala
Por volta de 12 000 anos atrás, um grupo de humanos liderou um dos acontecimentos mais extraordinários da história. Eles aprenderam a espalhar sementes e regá-las, descobriram como domesticar animais e perceberam que o resultado dessas iniciativas tinha imenso valor comercial. O advento da agricultura não só pôs fim à era dos caçadores-coletores, que durante 2,5 milhões de anos sobreviveram coletando plantas e caçando animais, como moldou o futuro do planeta. “A Revolução Agrícola permitiu que as populações aumentassem de maneira radical e criou oportunidades para o surgimento de cidades populosas e impérios poderosos”, escreveu o historiador israelense Yuval Noah Harari no best-seller Sapiens: uma Breve História da Humanidade. Mas a agricultura foi além. De acordo com um estudo realizado pela Universidade de Zurique, na Suíça, as atividades agrícolas mudaram para sempre a fala humana — e isso é apenas o começo das recentes e fantásticas descobertas no campo da linguística.
Poucas áreas do conhecimento avançaram tanto nos últimos anos quanto o estudo da linguagem. Um dos responsáveis por isso é o linguista suíço Balthasar Bickel, que comandou a pesquisa sobre os efeitos da agricultura na introdução de novos sons e que agora se dedica a escrutinar os impactos da revolução digital na comunicação entre pessoas. Bickel comprovou que alterações na dieta fizeram a mandíbula evoluir. Graças ao cultivo de trigo e cevada, o Homo sapiens do período neolítico pôde saborear alimentos macios, em vez da carne tesa de um antílope. No processo evolutivo, os dentes superiores projetaram-se para a frente, exatamente como são hoje em dia. Segundo Bickel, a nova posição da mandíbula inseriu sons conhecidos como labiodentais, como as consoantes “f” e “v”, usadas em diversos idiomas.
Se o passado mudou a linguagem humana, o futuro deverá fazer o mesmo. Os cientistas querem agora entender o impacto da era digital. Uma das suspeitas é que as cada vez mais frequentes conversas entre seres orgânicos e máquinas vão obrigar as pessoas de carne e osso a pronunciar melhor as palavras. Por mais que assistentes de voz como Siri, da Apple, e Alexa, da Amazon, tenham evoluído, elas são um exemplo de como a inteligência artificial sofre para compreender as peculiaridades da fala humana. A maioria dos seres pensantes abusa de abreviações, gírias e outros vícios de linguagem. Quando dialogam com um robô, as pessoas se esforçam para que a comunicação se estabeleça, o que provocará, segundo os linguistas, ajustes na maneira de os humanos se expressarem.
O avanço da tecnologia trará mudanças ainda mais impressionantes. A Universidade de Zurique está à frente de um projeto que parece saído da ficção científica. Recentemente, cientistas instalaram eletrodos no cérebro de um paciente durante uma cirurgia e captaram fragmentos do que ele pensava. “Em breve, será possível prever o que alguém está pensando antes que a pessoa diga”, afirmou o linguista Bickel. “Isso vai levar a comunicação humana para outro patamar, transformando tudo o que fizemos até aqui.” Se a agricultura fez surgir novos sons, o desenvolvimento tecnológico pode até torná-los desnecessários.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694