Os guardas armados responsáveis por escoltar e proteger dia e noite o rinoceronte Sudão, dentro de um santuário ecológico na região central do Quênia, tratavam o imenso animal como um “gigante gentil”. Último macho de sua espécie, o rinoceronte-branco-do-norte era uma das principais atrações da reserva. Participou de campanhas publicitárias e tornou-se símbolo da luta contra a bestial prática de caça ilegal que dizimou seus pares. O chifre da subespécie a que ele pertence, estimada em 25 000 indivíduos, espalhados pelo sul do Sudão, Uganda, República Democrática do Congo e República Centro-Africana, era alvo de cobiça. O resultado: a redução do grupo a apenas três remanescentes.
Eram Sudão, o magnífico, e as fêmeas Najin e sua filha, Fatu. Com a morte natural do macho, em 2018, de causas naturais, a extinção dos rinocerontes-brancos-do-norte era tida como iminente. Agora, contudo, em movimento extraordinário, o anúncio da primeira fecundação in vitro em um rinoceronte-branco-do-sul, espécie menos ameaçada, oferece uma nova esperança de impedir o desaparecimento desses animais.
Um grupo de pesquisadores, liderados pelo BioRescue, consórcio internacional de cientistas e conservacionistas, conseguiu, com sucesso, transplantar um embrião de rinoceronte fecundado em laboratório no útero de uma fêmea adulta. A prática é muito usada em humanos e em animais domesticados, como vacas e cavalos. No caso dos rinocerontes, porém, os resultados eram desconhecidos. Desde 2019, a BioRescue produziu 29 embriões de rinocerontes-brancos-do-norte a partir de óvulos de Fatu e do esperma preservado de Sudão e outros três machos, coletados ao longo de mais de quinze anos. Os embriões estão armazenados em Berlim, na Alemanha, e Cremona, na Itália.
Dada a raridade do grupo do norte, todo o estudo foi feito com a turma do sul. Foram coletados óvulos de uma fêmea que está em um zoológico na Bélgica e sêmen de um macho alocado na Áustria. Dois embriões foram, então, transferidos para uma outra fêmea, que vive no Quênia. Para ter certeza de que ela estava no período fértil, outro rinoceronte macho, castrado, foi apresentado a ela. Sensível a feromônios, o bicho foi capaz de apontar o momento ideal do procedimento. A implantação funcionou. Mas a gravidez, de dezesseis meses, não chegou ao fim. Tanto Curra quanto o rinoceronte macho morreram vitimados por uma bactéria, sem nenhuma relação com o processo. A autópsia, no entanto, revelou um feto absolutamente viável de 70 dias no útero da mãe.
O resultado foi recebido com entusiasmo, apesar do tropeço. Há uma nova esperança. O próximo passo, a caminho do desfecho feliz, é implantar embriões dos rinocerontes-brancos-do-norte, colhidos no passado, em espécimes do sul. Tanto Najin quanto Fatu são consideradas velhas demais para engravidar. Se bebês viáveis nascerem, serão os primeiros da espécie a vir ao mundo desde 2000. Na sequência, outras fertilizações serão feitas, em longo e minucioso processo. O trabalho é longo. Não há certeza de que a espécie vá imediatamente escapar do fim, mas receberá uma nova chance de sobrevivência. “Será um modelo de recuperação de ecossistemas”, diz Thomas Hildebrandt, líder do grupo de estudos da BioRescue e do departamento de manejo reprodutivo do Instituto Leibniz, na Alemanha, em comunicado. Outra espécie, os rinocerontes de Sumatra, hoje reduzidos a quarenta indivíduos, também podem ser beneficiados pela técnica.
As tentativas para salvar os rinocerontes-brancos-do-norte representam os esforços mais nobres de resgate e preservação usando tecnologia e conhecimentos científicos de ponta. Do outro lado desse espectro estão empresas de biotecnologia que buscam recuperar espécies completamente extintas, como os mamutes, de tempos ancestrais. Essas iniciativas levantaram um ruidoso e necessário debate ético sobre a viabilidade de reinserir animais extintos em ecossistemas existentes, sem saber qual seria o impacto, hoje. É a ciência em movimento, na busca por enxergar o passado da fauna, mas dedicada, sobretudo, a proteger as espécies e subespécies que ainda estão entre nós, belas e fascinantes como são Najin e Fatu.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878