A nova polêmica sobre a descoberta da tumba do faraó Tutancâmon
No centenário do feito, uma exposição em Oxford contesta a imagem do arqueólogo Howard Carter como herói solitário
Uma das crenças dos antigos egípcios diz que todo ser humano morre duas vezes: a primeira quando a alma abandona o corpo e a segunda quando o nome dessa pessoa é mencionado pela última vez. Sendo assim, é possível concluir que o faraó Tutancâmon nunca esteve tão vivo. Na verdade, passou mais de três milênios repousando e renasceu há exatos 100 anos com um achado que revolucionou a arqueologia moderna e a percepção sobre a fascinante cultura do Egito. A descoberta da tumba praticamente intacta do “Rei Menino” alçou o líder das escavações, o egiptólogo britânico Howard Carter, à condição de celebridade internacional. Uma nova exposição da Biblioteca Bodleiana da Universidade Oxford, no Reino Unido, que celebra o 100º aniversário da façanha, porém, apresenta novos detalhes sobre os trabalhos no Vale dos Reis, em Luxor.
A questão é bastante polêmica e altera significativamente o papel de Carter na empreitada. “A escavação não foi realizada por um solitário e heroico arqueólogo inglês, mas também por membros da equipe egípcia moderna, que tantas vezes foram excluídos da história”, disse Richard Parkinson, cocurador da exposição aberta até fevereiro de 2023. “Esperamos que a exposição contextualize, celebre, interrogue e critique a famosa descoberta que comemora.” A mostra conta com uma coleção de fotografias, cartas e desenhos, além dos inéditos diários do próprio Carter e de Minnie Burton, esposa do fotógrafo Harry Burton, também mundialmente celebrado à época. O material revela a importância dos mais de cinquenta trabalhadores locais que auxiliaram Carter e de dezenas de outros voluntários, incluindo crianças, cujas identidades jamais foram reveladas.
Bancada pelo lorde britânico George Carnarvon, a expedição liderada por Carter começou em 1907 e teve de ser interrompida entre 1914 e 1917 em decorrência da I Guerra Mundial. Diante de anos de buscas infrutíferas, Carnarvon chegou a ameaçar a interrupção do financiamento, até que, em 4 de novembro de 1922, recebeu o aviso da descoberta e um convite para presenciar a abertura da tumba.
A força impulsionadora da egiptologia foi, na verdade, a invasão das tropas de Napoleão Bonaparte, em 1798, quando o ainda jovem general levou para a França historiadores, botânicos, engenheiros e geógrafos, além de tesouros como a Pedra de Roseta, que propiciou a decifração da milenar escrita egípcia. A partir de então, entidades particulares ou estatais de países como França, Inglaterra e EUA investiram em campanhas para desenterrar o passado sob a perspectiva colonizadora, seja no Egito, em Israel ou na Palestina. “Houve uma disputa pela memória. Era comum a glorificação de figuras como Carter como argumento para legitimar a posse de itens de museu e o controle do discurso de como a história deveria ser reescrita”, disse a VEJA Daniel Justi, doutor em história comparada pela UFRJ e membro do Seshat, o centro de pesquisas de arqueologia do Egito da instituição.
Na contramão do sucesso de Carter e de personagens como Indiana Jones, o pacato professor que se torna um aventureiro caçador de tesouros, criado por George Lucas e Steven Spielberg em 1981, a vida real de um pesquisador costuma ser menos glamorosa. “Arqueologia exige a presença de uma equipe multidisciplinar, é um trabalho coletivo”, diz Justi. “Mesmo após seu processo de islamização, o Egito sempre se esforçou para preservar seu passado e é positivo que essa exposição destaque a participação de seu ministério das antiguidades.”
A controversa tumba do faraó, cuja importância pós-morte foi bem maior do que a de seu breve reinado em vida, ganhará um novo lar, o Grande Museu Egípcio, em Gizé, que deve ser inaugurado em novembro. A memória do rei “Tut” segue vivíssima, ainda que sujeita a reparações históricas.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790