Bebês ‘made in China’
A notícia de que um biólogo chinês teria criado os primeiros humanos com DNA modificado em laboratório reacende o debate sobre os limites éticos da ciência
“Sinto a forte responsabilidade de não só chegar primeiro, mas também de estabelecer um exemplo. A sociedade decidirá o que fazer a seguir.” Assim o biólogo chinês He Jiankui apresentou ao mundo, em entrevista exclusiva concedida à agência noticiosa americana Associated Press, na segunda-feira 25, a desconcertante história das bebês gêmeas apelidadas de Lula e Nana — não se conhecem ainda os verdadeiros nomes das meninas. Caso seu relato seja verdadeiro, as irmãs seriam os primeiros seres humanos nascidos com o DNA modificado em laboratório. O cientista alega que, para alcançar a suposta proeza, utilizou a técnica conhecida como Crispr-Cas9 para manipular os genes dos embriões nas plaquetas (veja os detalhes no quadro abaixo). O objetivo da manipulação teria sido desativar o gene CCR5, responsável por produzir uma proteína que deixa o organismo vulnerável ao HIV, o vírus da aids. Assim, teoricamente, os bebês, cujo pai é soropositivo, seriam imunes à doença. Jiankui esclareceu que a técnica teve 100% de sucesso em uma das gêmeas e êxito parcial na outra — esta, portanto, ainda poderia contrair o HIV ao longo da vida.
A notícia foi recebida com críticas, muitas críticas, pela comunidade científica internacional — em especial pelas questões éticas que o procedimento do biólogo chinês levanta. A edição de embriões humanos é proibida, por exemplo, nos Estados Unidos e no Brasil. Mesmo na China, onde não é ilegal, o trabalho de He Jiankui foi atacado. Em uma carta aberta que circula on-line, mais de 100 cientistas — a maioria em atividade no país asiático — repudiaram o anunciado feito do colega: “A ética biomédica para essa suposta pesquisa existe apenas no nome. Fazer pesquisas diretamente em humanos só pode ser caracterizado como loucura. A caixa de Pandora foi aberta”, observou o grupo. “Talvez ainda tenhamos um resto de esperança para fechá-la antes que seja tarde demais”, completaram os especialistas. Raros foram os pesquisadores que apoiaram o biólogo chinês. Um deles, George Church, geneticista da Universidade Harvard (EUA), declarou: “Creio que seja justificável (o uso da técnica Crispr-Cas9) para combater o HIV, uma imensa e crescente ameaça à saúde pública”.
Outro senão que alarmou os cientistas ao redor do planeta foi o modo como He Jiankui procedeu do ponto de vista acadêmico. O chinês, é verdade, descreveu todo o processo de seu experimento, mas sem tê-lo exposto à avaliação de colegas ou de revistas científicas, como seria de praxe. Em razão disso, por enquanto, tudo o que se tem como certificado do êxito da experiência são suas palavras. De acordo com o biólogo, a manipulação genética foi feita durante a fertilização em laboratório. He Jiankui conta que primeiramente isolou um espermatozoide e depois inseminou um óvulo. Em seguida, editou quimicamente o embrião. No total, teriam sido realizadas seis tentativas de implante de embriões no ventre materno até que a gestação vingasse.
Cientistas que analisaram os ainda parcos documentos apresentados por He Jiankui avaliam que, na hipótese de o biólogo estar dizendo a verdade, são imprevisíveis os efeitos colaterais nos bebês com DNA modificado. A manipulação do gene CCR5 pode, por exemplo, deixar as gêmeas muito suscetíveis à morte por uma simples gripe. Para o biomédico Kiran Musunuru, da Universidade da Pensilvânia (EUA), a prática foi “inescrupulosa, uma experiência com seres humanos indefensável em termos éticos”. Segundo sua análise, no caso da bebê que ainda continuou vulnerável ao HIV, “na verdade haveria quase nada a ser ganho e ela estaria sendo exposta a toda sorte de risco à saúde”.
A técnica Crispr-Cas9 foi desenvolvida, em 2012, pela microbióloga francesa Emmanuelle Charpentier e pela bioquímica americana Jennifer Doudna. O método foi testado em humanos adultos pela primeira vez em 2016, quando pesquisadores da Universidade Sichuan, na China, inseriram células modificadas em um paciente com câncer de pulmão com o objetivo de aprimorar a defesa do organismo contra o tumor. Os resultados, inconclusivos, foram então publicados na revista inglesa Nature. Um ano depois, em 2017, cientistas da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon (EUA) editaram um embrião humano para evitar uma mutação hereditária que implicaria em problemas cardíacos. Em ambos os casos, entretanto, não houve inseminação. O suposto passo além de He Jiankui teria sido realizar a concepção e promover o nascimento dos bebês. Assim, ao contrário do que ocorre quando a manipulação é realizada em genes de adultos, as características modificadas nas crianças — sejam elas benéficas ou não — poderiam, no futuro, ser transmitidas a seus herdeiros.
A veracidade dos resultados alardeados por He Jiankui foi amplamente questionada. Disse o geneticista catarinense Ciro Martinhago, doutor em genética reprodutiva e dono do laboratório Chromosome: “Há muitos outros exemplos de feitos aparentemente grandiosos que foram falsificados. Vale lembrar que, em 2005, Hwang Woo-suk, professor de veterinária da Universidade de Seul, anunciou que havia produzido os primeiros humanos clonados e extraído deles células-tronco. Pouco tempo depois, descobriu-se que era tudo mentira”. Diante da avalanche de dúvidas mundo afora, o biólogo chinês revelou, na quarta 28, durante a II Conferência de Edição de Genoma Humano, na Universidade de Hong Kong, que uma segunda gestação com embriões igualmente editados está em curso na China. Ele garantiu ainda ter enviado um artigo com o estudo para a avaliação de uma revista científica, cujo título não informou.
O que dificulta sobremaneira a checagem das informações do biólogo chinês é que os experimentos teriam sido realizados em uma empresa privada — de propriedade do próprio He Jiankui, que desde fevereiro se encontra licenciado, sem remuneração, de suas funções como professor na Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China. Caso os resultados se confirmem, a próxima e inexorável etapa do processo será a promoção de um debate público acerca da pertinência de experimentações semelhantes com seres humanos.
Nesse ponto, a história tende a se repetir. Na área genética, dois casos servem de referência. Em 1978, ano em que nasceu, na Inglaterra, a menina Louise Brown, o primeiro bebê de proveta da história, o prodígio, realizado pelo médico Robert Edwards (1925-2013), foi classificado como “abominação moral” por boa parcela da comunidade científica. Havia, na época, receio em relação aos efeitos colaterais para a criança — Louise hoje tem 40 anos. Com o tempo, verificou-se que a técnica trazia muito mais benefícios. Ela se popularizou e Edwards ganhou o Nobel em 2010. No caso da clonagem, apresentada ao planeta em 1996 com a ovelha Dolly, o próprio criador, o escocês Ian Wilmut, se mostrou contrário ao uso do método em humanos. Após avaliações técnicas de universidades e de especialistas da ONU, chegou-se ao consenso de que a clonagem de pessoas é antiética e imoral — e, hoje, até a usualmente permissiva China proíbe o procedimento. Em tese, a edição de bebês permitiria o combate a doenças, mas também a escolha de dotes que atenderiam, por exemplo, a interesses de eugenistas. E sabemos no que dá a ideia de uma raça supostamente pura e perfeita.
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611