Relatos de experiências de quase morte ocupam uma área nebulosa da medicina. Descrições de projeções astrais, como são chamadas as situações em que a pessoa acredita ficar fora do corpo físico, viagens em túneis de luz, levitação, absoluta dissolução do ser e vislumbres de entidades extraterrenas não são exatamente temas que os cientistas costumam analisar. A ausência de estudos de fôlego sobre o fenômeno só contribui para que vivências desse tipo sejam abordadas sob um ponto de vista místico, de pouco valor para quem quer compreendê-las. Nos últimos anos, contudo, a realidade se impôs. Com o avanço dos recursos, mais pacientes sobrevivem a episódios traumáticos — como infarto, acidente e tantos outros —, e portanto mais narrativas afloram nas emergências dos hospitais. Diante das elevadas incidências, os especialistas decidiram investigar com mais atenção o assunto. E acabaram surpreendidos pelo que encontraram.
Cientistas da NYU Grossman School of Medicine, a renomada faculdade de medicina de Nova York, entrevistaram 567 homens e mulheres que tiveram experiências vívidas e lúcidas quando deveriam estar inconscientes. O estudo é relevante por alguns motivos. Em primeiro lugar, destaque-se o fato de o número de pacientes analisados ser inédito, o que torna as conclusões mais confiáveis. Ressalte-se também a seleção de casos de diferentes países, incluindo Estados Unidos e Reino Unido, por um período estendido, de quase três anos. Sob o olhar da ciência, a diversidade de análises oferece uma visão mais ampla e menos enviesada. Além disso, os cientistas observaram a atividade cerebral durante esses eventos e perceberam picos de atividade das chamadas ondas gamma, delta, theta, alpha e beta. O impressionante é que elas estão associadas definitivamente a momentos de grande demanda, como se aquelas pessoas estivessem fazendo um esforço para pensar ou resgatar algo da memória.
A pesquisa concentrou-se em pacientes que sofreram paradas cardíacas, e por razões óbvias. “Do ponto de vista de emergência, elas são o fenômeno mais próximo da morte”, afirma o conceituado cardiologista Sergio Timerman, do InCor, que é também um dos maiores especialistas em técnicas de reanimação. “Com o coração parado e os outros órgãos na iminência de parar, uma série de alterações metabólicas, funcionais e neurológicas acontece”, completa o profissional, que já ouviu inúmeros relatos de pessoas que passaram por experiências de quase morte. De acordo com o estudo feito pela faculdade americana, um em cada cinco sobreviventes de ataques do coração conheceu episódios desse tipo — e todos, sem exceção, gostaram do que “viram”.
ENTUSIASMO PELA VIDA
Durante os meses finais da gravidez da segunda filha, a educadora Maria Paula Puglisi Yoshihara, 50 anos, sentia falta de ar, mas os sintomas acabaram confundidos com ansiedade e não foram investigados com a devida atenção. Quatro dias após dar à luz, foi internada às pressas com um quadro de insuficiência cardíaca. Ficou cerca de dez dias em coma e, ao abrir os olhos no hospital, percebeu que tinha passado por uma experiência de quase morte. “Lembro do processo de olhar os médicos, mesmo intubada, e não sentir desespero por aquela situação, mas apenas um desejo de entender o que acontecia”, diz. “Em nenhum momento senti dor ou desconforto.” Pequenos problemas que ocupavam a sua mente poucos dias antes, como o pagamento da hipoteca do apartamento, deixaram de ter importância, e ela concentrou os esforços em ter alta da UTI. “Quando acordei, olhei para a enfermeira e perguntei o que eu precisava fazer para sair de lá”, lembra. “A experiência me deu entusiasmo para desfrutar o momento e não me preocupar com o que vai acontecer amanhã.” Hoje em dia, está recuperada e sem sequelas do episódio.
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A proximidade do fim, de fato, pode levar a aventuras mentais extraordinárias. As narrativas coletadas pela NYU Grossman School of Medicine assemelham-se em diversos aspectos: sensação de separação do corpo, capacidade para enxergar novas cores e lembranças da infância distante são comuns entre muitos pacientes. Nenhum entrevistado teve dor ou desconforto. Muito pelo contrário: os episódios, disseram os pesquisados, foram extremamente prazerosos. É por isso que o senso comum tenta justificar o fenômeno com explicações quase sempre superficiais — segundo essa linha, eles seriam acontecimentos místicos ou alucinações provocadas pelo coquetel de medicamentos
Agora, porém, a ciência já reuniu elementos suficientes para refutar tais afirmações. “À medida que o cérebro se desliga durante os eventos de reanimação, vários de seus freios naturais são liberados”, afirmou o médico britânico Sam Parnia, líder do ensaio e uma das grandes vozes do ainda incipiente campo de estudos. “O processo, conhecido como desinibição, permite o acesso às profundezas da consciência e das memórias guardadas pelas pessoas.” De maneira simplificada, trata-se de um artifício utilizado pelo cérebro para que aquele corpo em particular não sofra com o mal que o aflige — em suma, funciona como um mergulho sem barreiras em um nível de consciência mais fundo. O advogado Eduardo Bonumá, de 80 anos, viveu exatamente isso após sofrer uma parada cardíaca. Durante o processo de reanimação, não sentiu desconforto — o que chama a atenção, dado que a ação exigiu inclusive choques que, em circunstâncias normais, provocariam dor intensa.
EXPERIÊNCIA INDOLOR
Alguns anos atrás, o advogado Eduardo Bonumá, 80 anos, desmaiou enquanto dirigia em São Paulo. Ao perder a direção, bateu em outros três veículos. Seu coração havia parado de bater — a morte, de fato, estava por perto. Socorristas foram acionados e ele chegou a ser dado como morto, já que a reanimação não funcionava. Sua agenda de contatos foi encontrada e parentes tiveram de ser chamados para a despedida. “Mas acordei no Hospital das Clínicas, em uma sala enorme, com várias outras pessoas ao meu redor”, relembra. “Acordei meio indisposto, mas sem dor. Não senti nada.” Eis aqui o mistério que envolve sua experiência de quase morte. Ele foi reanimado graças ao trabalho enérgico dos médicos, que envolveu choques com desfibriladores, ações sempre dolorosas. A ausência de desconforto é sua memória mais surpreendente do episódio. Mais tarde, soube que havia sofrido uma parada cardíaca e que seu cérebro tinha ficado sem oxigênio por alguns instantes. Mesmo assim, o órgão foi capaz de protegê-lo da sensação de dor, uma das características mais marcantes das experiências de quase morte.
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As descobertas da equipe da NYU representam o capítulo mais recente do esforço da ciência para esquadrinhar a riqueza das experiências de quase morte. Sam Parnia debruça-se sobre o tema há pelo menos duas décadas. Em 2014, publicou a primeira versão da investigação chamada Aware, e observou como a mente humana continuava ativa mesmo com o coração parado. No estudo, os pesquisadores colocaram, nas salas onde a reanimação cardíaca era realizada, fotos em prateleiras que só podiam ser vistas do teto — não visíveis aos funcionários do hospital, que fique claro. A ideia era tentar validar as descrições de projeção astral.
Muito embora nenhum resultado determinante tenha sido obtido, ao menos dois pacientes descreveram com precisão eventos ocorridos ao longo do período de reanimação, enquanto eles estavam com o coração parado. Parnia não é o único a se dedicar ao tema. O médico holandês Pim van Lommel conduziu outro trabalho essencial em 2001, quando analisou 344 pacientes e identificou relatos consistentes e irrefutáveis de lembranças do momento da reanimação. Antes deles, o tema era relegado aos escaninhos da pseudociência.
A expressão original, “experiência de morte iminente”, foi cunhada pelo epistemólogo francês Victor Egger no fim do século XIX, em meio a discussões sobre descrições de alpinistas que experimentaram uma rápida reavaliação da vida durante quedas. Nos anos 1960, a autora britânica Celia Green, conhecida pelo ceticismo filosófico, corrente que propõe um exame crítico de sistemas dogmáticos, publicou um volume com quase 400 descrições de experiências semelhantes. Foi só na década de 70 que o psiquiatra Raymond Moody cunhou o termo “experiência de quase morte”, usado até os dias de hoje. Em todos esses casos, contudo, faltava rigor científico. Agora, os pesquisadores finalmente passaram a tratar o tema com a seriedade que merece: não como se os relatos fossem alucinações ou invenções de sobreviventes crédulos, mas uma experiência cerebral tão intensa quanto verdadeira. Ainda assim, seu real significado continua sendo uma grande incógnita.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818