Uma batida eletrônica mesclada de instrumentos suavemente dedilhados embala os pensamentos de quem busca concentração para estudar. Se o desejo for relaxar, o barulho da chuva caindo ou o da cachoeira pode ajudar. Caso a necessidade seja de adormecer, a sugestão é deixar-se levar pelos sons de sussurros, estalos e o da fricção de objetos. Em um mundo afetado pelos ruídos caóticos do trânsito, das obras, das falas altas e agitadas, da barulheira do cotidiano, brota um novo meio de acalmar alma e coração: são as playlists, canais no YouTube e aplicativos que oferecem trilhas sonoras destinadas a facilitar a execução de ações cotidianas. Cada vez mais populares, esses recursos prometem o alívio das tensões e a recuperação da energia necessária para dar conta de tanta coisa.
Os números impressionam. Apenas o Lofi Girl, canal no YouTube que toca ininterruptamente sequências de hip-hop que supostamente contribuiriam para aumentar a concentração nos estudos, tem 11,3 milhões de assinantes. Nos serviços de streaming de música, o sucesso de projetos semelhantes também é grande. Há diversos painéis dedicados às playlists de bem-estar, relaxamento e sono. A seleção “peaceful piano”, do Spotify, soma 6,5 milhões de seguidores, que têm à disposição catorze horas de música. A “deep focus”, voltada para aumentar a atenção, entrou para a lista de favoritos de 3,7 milhões de ouvintes.
O interesse crescente provocou a ciência a investigar o que há de verdade nos eventuais benefícios dos sons. Os estudos sugerem, de fato, a existência de efeitos positivos. Em um deles, publicado no periódico científico Frontiers in Psychiatry, a chamada estimulação auditiva foi considerada ferramenta promissora para a manipulação de processos cognitivos e modulação dos estados de humor. Contudo, o trabalho também registrou a ressalva de que são necessárias investigações mais profundas. Entre os alvos escolhidos, estão os batimentos auditivos binaurais, um fenômeno perceptivo que ocorre quando dois tons com ligeira diferença na frequência são apresentados simultaneamente aos ouvidos. Eles seriam capazes de influenciar a cognição e os estados mentais, melhorando a concentração.
Uma revisão de 22 pesquisas sobre o tema publicada na revista científica Psychological Research apontou eficácia na técnica e concluiu que os resultados são superiores quando a exposição ocorre também antes de determinada tarefa. A outra modalidade que se encontra sob escrutínio científico é a Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano (ASMR), emissão sonora conhecida por causar formigamentos e comichões em quem a escuta. Nesse caso, os sons são pontuais, como o de corte de cabelo ou o de plástico ou papel sendo amassados. Em 2018, quando mais de 13 milhões de vídeos de ASMR circulavam pelo YouTube, a Universidade de Sheffield, na Inglaterra, mostrou que a técnica reduzia a frequência cardíaca e aumentava as emoções positivas.
As hipóteses para os possíveis benefícios incluem desde o efeito estimulante dos sons até a ativação, por eles, de centros cerebrais associados ao processamento das emoções. “A música melhoraria o rendimento pelo efeito emotivo”, diz o neurologista Lúcio Huebra, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. “Como a execução das atividades envolve sentimentos, ela seria beneficiada pelos sons.” Ainda há muito a ser explicado sobre o assunto, porém. É preciso saber, por exemplo, se a profusão de sons terapêuticos não teria o efeito reverso se usada em demasia. Enquanto as respostas não chegam, a receita para relaxar, estudar ou trabalhar melhor deve incluir o básico da cartilha para uma mente saudável: exercícios físicos e tempo para o descanso do cérebro. A trilha sonora será sempre coadjuvante.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804