É essencial entender como os coronavírus vieram dos animais para nós
Trata-se de um atalho para tentar evitar novos surtos e desenvolver vacinas
De todas as bobagens ditas por Donald Trump sobre a pandemia, nenhuma superou a afirmação de que o vírus que provoca a Covid-19 teve origem em um laboratório de Wuhan, epicentro dos primeiros casos da doença, no fim de dezembro do ano passado — um documento da inteligência alemã foi o que melhor definiu o comportamento do presidente americano, modo de “desviar a atenção dos seus próprios erros e redirecionar a raiva para a China”.
Pesquisas minuciosas, e já amplamente divulgadas, confirmam: o Sars-CoV-2, o novo coronavírus, teria sido transmitido ao ser humano a partir de um hospedeiro intermediário, o pangolim, mamífero muito comum em zonas tropicais da Ásia e da África, contaminado pelo hospedeiro natural, o morcego (veja o quadro na pág. ao lado). É muito possível, portanto, que, longe de tubos de ensaio e pipetas, a origem do surto tenha o carimbo dos mercados de bichos (vivos) do Oriente — não porque produtores e consumidores tenham tido mirabolantes ideias laboratoriais e tampouco porque desejassem provocar a ruína global, intencionalmente, como faz querer parecer o presidente dos Estados Unidos. Os animais, enfim, são o passo zero da transmissão — mapear os vírus que circulam entre eles e que podem infectar a nós, frágeis humanos, é a maneira cientificamente mais adequada de evitar outros assustadores e mortais medos coletivos.
A exploração desenfreada de florestas ricas em biodiversidade, marca indelével de nosso tempo, empurra os animais selvagens para perto do homem. Na China e em parte do sudoeste asiático esse comportamento é comum, associado a práticas cruéis e insalubres envolvidas na captura, abate, comércio e transporte da fauna — embora, ressalve-se, ondas de modernidade, impostas por exigência de autoridades locais e pressão de regras internacionais, comecem a provocar boas mudanças. Mas os mercados de bichos vivos existem e um deles, o Huanan, em Wuhan, temporariamente fechado, hoje é tristemente conhecido como o ponto de largada da pandemia — mas pode representar o começo do fim do consumo de animais selvagens.
Para tentar frear a próxima contaminação, há um caminho: rastrear a gênese dos vírus existentes na natureza, identificar os que são perigosos e agir rapidamente. Em outras palavras: convém apostar nos bichos e buscar as pessoas que se aproximaram deles. Uma das organizações mais atuantes nessa área é a EcoHealth Alliance, que há quinze anos reúne profissionais que saem a campo colhendo amostras de sangue ou de células da boca ou do nariz de animais e de pessoas — para catalogar os vírus e decodificar o genoma deles. Quanto mais perto do Homo sapiens na escala evolutiva estiver o hospedeiro, maior a chance de os vírus dele nos infectarem também (por isso não há busca de resíduos em jacarés, por exemplo).
“Insistimos numa tecla, permanentemente: o comércio de animais selvagens traz enorme risco de novas pandemias”, diz o zoólogo e parasitologista inglês Peter Daszak, presidente da EcoHealth. A ONG faz parte de um grupo maior, o Global Virome Project. Criado em 2018, e constantemente fustigado por Trump (que promove sucessivos ataques contra os trabalhos científicos, já que verdades não lhe interessam), o projeto é orçado em 1,2 bilhão de dólares e tem como objetivo seminal identificar ao longo de dez anos pelo menos 70% dos estimados 1,6 milhão de vírus que existem no planeta — uma parcela muito pequena dessa turma pode provocar danos, como ocorre com alguns coronavírus, mas quando explodem, em rápida disseminação, tendem a ser catastróficos. Daí a importância, também, das vacinas universais — que agem contra uma família viral inteira.
“Conseguir a vacina universal é perfeitamente factível, mas para isso precisaremos de dinheiro e dedicação”, diz Daszak. A imunização contra o Sars-CoV-2 não deve sair antes de um ou dois anos, mas será crucial na busca pela versão universal contra todos os coronavírus. Depois do levantar da quarentena, depois de vacinados, precisaremos aprender a respeitar um pouco mais o meio ambiente. Essa é a regra do jogo, o legado pedagógico e vital da Covid-19.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687