Empreendedores planejam estação espacial com hotel e centro de pesquisas
Férias em órbita: a ideia é oferecer confortos raros por lá como ar, água e gravidade
A imagem da gigantesca construção circular rodopiando no espaço, ao som da valsa Danúbio Azul, ficou gravada na retina e na memória de quem a viu pela primeira vez nos cinemas em 1968 e nas subsequentes reprises nos anos 1970 em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Mesmo tendo pouco ou nenhum conhecimento de física, qualquer espectador do clássico de Stanley Kubrick entende intuitivamente por que os viajantes conseguem caminhar dentro da estação espacial, mesmo estando em ambiente de ausência de peso: a rotação gera força centrífuga, que cria gravidade artificial. Esse conceito já era conhecido antes — a paternidade é atribuída ao engenheiro croata Herman Potocnik (1892-1929) e ao cientista de foguetes mais famoso da história, o alemão Wernher von Braun (1912-1977) —, mas foi o filme que popularizou a ideia de podermos viver e trabalhar no espaço no início do século XXI.
A estação rotacional das telas ainda não se concretizou, mas caminhamos para alcançá-la. Um grupo de empreendedores e cientistas parece determinado a torná-la uma realidade antes do fim desta década. “O futuro está na rotação”, é o que anunciam os executivos da Orbital Assembly Corporation, cuja roda, apesar de já existir em imagens de computador (algumas mostradas nestas duas páginas), ainda depende de financiamento privado para ser viabilizada. Chamada originalmente de Von Braun, que também foi mestre em tecnologia de foguetes, acabou sendo rebatizada de Voyager, provavelmente porque alguém se lembrou de que Braun, antes de trabalhar para os americanos, construiu os mísseis V2 para os nazistas na II Guerra.
Polêmicas à parte, a Voyager tem potencial para se tornar um colosso da engenharia. Concebida por profissionais egressos da Nasa e das melhores faculdades dos Estados Unidos, ela terá diâmetro de 200 metros — quase o dobro da extensão da atual Estação Espacial Internacional (ISS), lançada há mais de vinte anos. O centro operacional da doca de atracação da Voyager, no anel central, será o primeiro equipamento a ser posto em órbita. A partir dali, astronautas, robôs e drones montarão as treliças do anel externo, onde será instalado o tubo de passagem que conectará os módulos de habitação. Essa estrutura circular, que na prática é onde as pessoas vão ficar, será ligada ao anel central por quatro elevadores.
Funciona assim: o voo chega à doca de atracação. Ainda em gravidade zero, o hóspede é conduzido a um dos elevadores. No trajeto, ele percebe seus pés se firmando na cabine, sensação que ficará ainda mais forte quando ele estiver andando pelo tubo que o levará a seus aposentos em um dos 24 módulos pressurizados, aquecidos e protegidos de radiação. A roda estará girando, como o mundo gira, mas, para o hóspede, será como se ela estivesse parada. A força gravitacional deverá ser um sexto da gravidade da Terra, equivalente ao que os astronautas sentem na Lua e suficiente para uma estadia normal, almoçando, tomando banho e dormindo. Não por acaso, a gravidade é um conforto ao qual a humanidade se adaptou. A completa ausência dela por longos períodos deixa sequelas no corpo, conforme relatou o astronauta Scott Kelly, que ficou quase um ano na ISS.
De acordo com a Orbital Assembly, os módulos serão oferecidos à indústria hoteleira, a laboratórios e agências como a Nasa. Os hotéis poderão configurar suítes de 30 metros quadrados ou vilas para acomodar até 16 pessoas, com opção de compra, que será oferecida a um bilionário esbanjador. “Infelizmente, o valor ainda é confidencial”, disse a VEJA Tim Alatorre, arquiteto-chefe da Voyager, sobre o custo de construção e preço de estadia. “Mas podemos adiantar, quanto à estadia, que a SpaceX deverá ser a principal fornecedora de transporte. Dependeremos dela para fechar o preço.” Sabendo que a ISS consumiu mais de 100 bilhões de dólares, pode-se imaginar quanto cobrarão por uma estação dez vezes mais sofisticada, que terá restaurante, bar e academia. Além disso, para que a Voyager não se transforme no primeiro Titanic da era espacial, serão instaladas 44 naves autônomas, que funcionarão como botes salva-vidas em caso de desastre. Trata-se de uma medida providencial, sem a qual o sonho correria o risco de morrer antes de nascer. Afinal, sobrevive-se sem gravidade por alguns meses. Mas nem mesmo poucos minutos sem oxigênio.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730