Retomadas há cerca de dez anos, as primeiras grandes escavações deste século no Parque Nacional de Pompeia, no sul da Itália, revelaram como os cidadãos comuns do Império Romano faziam compras e onde comiam quando estavam na rua, além de mostrar as condições de vida degradantes dos escravos. Esse e outros sítios arqueológicos espalhados pela Europa e África também iluminaram a influência dos romanos sobre a vida cotidiana no resto do mundo. Até mesmo quando iam ao banheiro e, posteriormente, tratavam seus dejetos.
A antropóloga americana Ann Olga Koloski-Ostrow, conhecida como a Rainha das Latrinas, passou os últimos 25 anos, como ela própria diz, na “sarjeta”. O resultado é o livro The Archaeology of Sanitation in Roman Italy: Toilets, Sewers, and Water Systems (A Arqueologia do Saneamento na Itália Romana: Sanitários, Esgotos e Sistemas de Água), ainda sem tradução no Brasil, que explorou, como ninguém jamais ousara fazer, o inovador sistema de banheiros dos romanos. Eles deixaram grande legado nesse campo, mas isso não impediu que um submundo sanitário surgisse nas cidades de então. “A forma como qualquer cultura trata seus dejetos humanos é relevante para o mundo de hoje”, disse ela a VEJA, enquanto convalesce de uma lesão cerebral e prepara mais dois livros sobre o tema.
Embora os usos e costumes variassem geograficamente, os cidadãos romanos contavam com banheiros públicos e privados. As cidades ofereciam os foricae, como eram chamados os comunitários. Consistiam em cômodos fechados e iluminados por pequenas janelas no alto da parede, com bancos de mármore ou pedra pontuados por fileiras de orifícios em forma de assentos. Não havia divisões entre eles. A proximidade, que na época não oferecia problema, seria aos olhos atuais um grande constrangimento.
Os foricae ficavam, em geral, perto dos famosos banhos públicos, cuja água usada era desviada para limpar e arrastar a sujeira. Uma outra vala, esta aberta, corria aos pés de quem estava fazendo suas necessidades. Na época, não havia ainda o papel higiênico, que seria inventado no século VI pelos chineses. Mas era de uso corrente um apetrecho chamado tersorium, construído com uma vareta que tinha amarrada à ponta uma esponja marinha ou pedaço de tecido. O usuário se limpava com essa ferramenta, que era então embebida em uma solução com vinagre para depois ser compartilhada novamente.
Como não poderia deixar de ser, os locais eram escuros, sujos, malcheirosos e insalubres, usados em grande parte por homens livres pobres e escravizados. Uma mulher que ousasse entrar nos banheiros públicos corria o risco de ser estuprada. Assim como os banhos públicos, eles eram financiados pela elite da época, mas não por benemerência nem por senso de dever cívico. Os poderosos queriam mesmo era manter as ruas limpas e evitar tropeçar em montes de detritos enquanto percorriam a cidade em suas impolutas togas de lã de cabra e linho.
A classe mais abastada preferia a comodidade e a privacidade das latrinas de suas vilas, que eram ligadas a fossas sanitárias — um avanço da engenharia que mais tarde seria adotado por outros povos e culturas. Como acontece nas fazendas e em locais ermos, esses repositórios tinham de ser esvaziados de tempos em tempos para evitar a disseminação de doenças e do odor tóxico do metano oriundo da fermentação. Os cativos eram responsáveis por carregar os dejetos e depositá-los em outros lugares. A ideia de ligar as fossas ao sistema de esgoto era rejeitada porque os nobres tinham receio de acabar sendo contaminados pela sujeira alheia.
Embora os romanos tenham criado a Cloaca Máxima, um dos sistemas de esgoto mais eficientes do mundo antigo, eles não conseguiram resolver todos os desafios de saúde da cidade-Estado, problema que ainda hoje se mantém em países mais pobres. Autora do livro The Other Dark Matter: The Science and Business of Turning Waste into Wealth and Health (A Outra Matéria Escura: a Ciência e o Negócio de Transformar Lixo em Riqueza e Saúde), também inédito no mercado brasileiro, a jornalista russa especializada em ciência Lina Zeldovich diz que a melhor maneira de aproveitar os dejetos como recurso é “imitar a Mãe Natureza”. Existem tecnologias que já fazem isso com alta precisão, tanto em países ricos quanto em desenvolvimento. Basta, afinal, colocá-las à disposição de todos.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766