Fernando de Noronha, um dos cartões-postais do Brasil, está sob risco
O que leva à questão: é possível fazer turismo sem ameaçar a natureza? É claro que sim
“O paraíso é aqui”, deslumbrou-se o célebre navegador italiano Américo Vespúcio (1454-1512) ao ver, pela primeira vez, em agosto de 1503, um certo arquipélago próximo ao atual Estado de Pernambuco. No ano seguinte, o território foi doado a um dos financiadores da expedição de Vespúcio, o português Fernão de Loronha, cuja adaptação do nome viria mais tarde a batizar o magnífico conjunto de 21 ilhas que aparece registrado nos livros de história como a primeira capitania hereditária do Brasil — sim, Fernando de Noronha. Desde o início deste mês, o paraíso terrestre cercado de água por todos os lados revelado por Américo Vespúcio está, com o perdão da redundância, cercado de riscos por todos os lados. Em um vídeo postado nas redes sociais, o senador Flávio Bolsonaro e o presidente da Embratur, Gilson Machado, afirmaram que pretendem “desatar nós” da legislação em vigor, que impede viagens de cruzeiros turísticos a Fernando de Noronha com o propósito de preservar a natureza do local. Polêmica, a proposta esquenta um debate já acalorado nestes dias de ataques ao meio ambiente: afinal, é possível manter o turismo vivo, inclusive do ponto de vista econômico, sem que isso represente uma ameaça às belezas naturais, às paisagens intocadas, aos patrimônios, enfim, da humanidade?
São raros os lugares capazes de encantar os visitantes depois de mais de 500 anos de interferência humana como Fernando de Noronha. Não por acaso. Desde 1986 o arquipélago é uma Área de Proteção Ambiental, o que vale dizer que parte dela não pode ser modificada. Tal medida foi reforçada dois anos depois com a criação do Parque Nacional Marinho. Assim, a região se mantém como um refúgio para diversas espécies de baleia, tartaruga, tubarão e golfinho, além de aves, peixes e corais. Como extensão da proteção nacional, em dezembro de 2001 a Unesco, órgão das Nações Unidas, reconheceu Fernando de Noronha como Patrimônio Natural da Humanidade. O título transformou a área em uma região de preservação obrigatória não só para os brasileiros — todo o planeta está submetido a isso desde então.
O projeto de Flávio Bolsonaro e Gilson Machado pegou as autoridades pernambucanas de surpresa e contrariou as entidades ambientalistas. “Nada foi discutido com o governo estadual”, disse a VEJA o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, José Bertotti. “Não há necessidade de recebermos mais turistas. Precisamos é aperfeiçoar os serviços que temos”, afirmou ele. Outro ponto de interesse do governo federal é o afundamento de embarcações para criar áreas artificiais de mergulho. “Noronha é um ambiente onde o mergulho acontece há décadas em pontos que a natureza já forneceu. Criar os artificiais trará o risco de prejudicar a biodiversidade”, observa o biólogo Pedro Henrique Pereira, do Projeto Conservação Recifal, que atua no Nordeste brasileiro.
A celeuma que envolve o arquipélago faz lembrar o caso de outros patrimônios da humanidade que tiveram sua preservação ameaçada pelo turismo — e que podem indicar o caminho para uma atividade turística responsável. No Peru, a administração de Machu Picchu implantou regras rígidas após a explosão do crescimento no número de visitantes. Em 1991, o local recebeu 77 295 turistas. Em 2016, quase 1,5 milhão. A falta de controle fez com que a Unesco cogitasse incluir Machu Picchu na lista de patrimônios em risco, dando ao governo o prazo de dois anos para solucionar a crise. Resultado: limite de 2 500 turistas por dia, tempo máximo de quatro horas de permanência no lugar e obrigatoriedade de guias em todas as visitas. Apesar disso, absurdos ainda ocorrem: em janeiro, seis turistas — dois brasileiros — invadiram uma área restrita, onde fizeram suas necessidades fisiológicas. O grupo foi proibido de entrar no Peru por quinze anos. Na Antártica, continente regido por um acordo internacional, os cruzeiros também estão em xeque. Em Fernando de Noronha, existe um limite de visitantes que, no entanto, já vem sendo desrespeitado: em 2019, foram 115 617, quando o total permitido é de 89 790. Se a proposta do senador Bolsonaro e da Embratur vingar, o paraíso poderá se tornar um inferno — acabando justamente com a sua atratividade turística.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678