Fósseis encontrados na China e em Israel mudam a história da evolução
A partir da descoberta, paleontólogos propõem também reinterpretar parte da migração da espécie humana na Terra
A Marcha do Progresso, ilustração de 1965 com a silhueta de um chimpanzé passando por várias etapas até chegar ao humano moderno, é um ícone da cultura pop. A imagem, concebida pelo artista Rudolph Zallinger, é tão autoexplicativa que até hoje estampa livros didáticos. Seu problema é que ela induz a acreditar que o ser humano evoluiu linearmente, separando-se de primitivos primatas 5 milhões de anos atrás e fazendo saltos para o presente — uma ideia fascinante, porém equivocada. A evolução do Homo sapiens está mais para um mosaico, no qual ele conviveu com outros hominídeos. A ciência ainda desconhece a raiz da espécie humana e as razões que levaram os demais grupos à extinção. Na verdade, não se sabe nem mesmo quantas versões do gênero Homo habitaram a Terra, já que o número vai crescendo com as descobertas.
Um fascinante achado veio da Ásia e sua história recente começa em 1933, em um canteiro de obras durante a invasão japonesa da província de Heilongjiang, no nordeste da China. Um trabalhador trombou com um crânio fossilizado e, vendo algum valor naquilo, guardou para a posteridade. Quando seus descendentes entregaram a relíquia a paleontólogos, eles provavelmente não sabiam que estavam ajudando a revelar ao mundo uma nova espécie, batizada então com o nome científico de Homo longi. Apelidado de Homem-Dragão em referência à região em que foi encontrado (o Rio do Dragão Negro), o espécime, que teria vivido há 146 000 anos, era um sujeito de estatura mediana, com características mistas: a caixa craniana é similar à do Homo sapiens, mas as feições — testa larga, sobrancelhas espessas, cabeça achatada, nariz, boca e dentes grandes — se assemelhariam às dos neandertais, que desapareceram há 30 000 anos. Em trabalhos divulgados recentemente, e mesmo sem informações de genoma, já que a extração de DNA de fósseis é muito difícil, cientistas chineses, australianos e britânicos que estudaram o crânio anunciaram estar convencidos de que se trata de uma espécie separada das quatro principais que coexistiram no passado (veja o quadro). “O longi é de uma linhagem irmã do sapiens”, afirma Xijun Ni, paleoantropólogo da Academia Chinesa de Ciências, que lidera o estudo.
Mas o que significaria destronar os neandertais como espécie mais próxima do sapiens em favor do longi? Já se sabe, desde 2013, que os neandertais contribuíram com 1% a 4% do genoma do homem moderno europeu, mostrando que houve intercruzamento entre as espécies em algum momento da pré-história. Se, no futuro, for possível obter o DNA do crânio do Homem-Dragão, mesmo ao custo de desintegrá-lo parcialmente, poderá surgir um mapa mais completo da origem e da migração da humanidade. Por enquanto, o que os cientistas propõem é que o Homo longi saiu da África, habitou a Ásia e acabou se encontrando com os humanos que para lá também migraram, convivendo e se miscigenando, até desaparecerem por seleção natural ou outro motivo.
Antropólogos israelenses não envolvidos com o estudo concordam com as origens africanas do Homem-Dragão, mas refutam que seja uma nova espécie. Na opinião deles, trata-se apenas de um neandertal primitivo ou, na melhor das hipóteses, uma variante do Nesher Ramla Homo — esta, sim, uma nova espécie encontrada pelos israelenses e anunciada em paralelo ao anúncio chinês. “Não há um estudo morfológico que suporte a teoria do Homem-Dragão”, diz o professor Israel Hershkovitz, da Universidade de Tel Aviv. Ele evita, até mesmo, a extrapolação que ilustra esta reportagem. Ao crânio do Homo longi falta, inclusive, a mandíbula. Já os restos do crânio do Nesher Ramla, que empresta seu nome da região israelense homônima onde foi encontrado, apesar de serem compostos de apenas duas partes (tampa do crânio e mandíbula), permitiram a geração de uma imagem em 3D que revela características nunca vistas em outro hominídeo. Além disso, o terreno onde o Nesher Ramla foi achado está repleto de ferramentas de pedra e fragmentos de animais, o que comprova que ele viveu e caçou por ali.
Existem indícios, segundo os especialistas israelenses, de que essa espécie antecedeu os neandertais, incluindo sua variante longi, e que estes migraram depois para a Europa, onde viveram até sua extinção. Os neandertais, portanto, podem ter sido a cabeça de ponte do gênero Homo na Europa, vindos do Oriente Médio. Arrasados pela Era Glacial, que perdurou por 100 000 anos até 12 000 anos atrás, suas cavernas ficariam de herança para os humanos que viriam a ocupar a região. Entre teses de um lado e de outro, e tantas outras postuladas por paleontólogos, é o caso de absorver as informações colhidas até agora de nossos dois novos primos e aguardar as próximas revelações. Afinal, família é assunto delicado.
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746