No famoso ensaio A Decadência da Mentira, de 1889, o poeta e romancista irlandês Oscar Wilde desafiou a teoria de Aristóteles ao escrever que “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. O autor do clássico O Retrato de Dorian Gray não considerou descobertas científicas que revelam as origens da humanidade e surpreendem por serem mais fantásticas do que a ficção. Foi exatamente o que aconteceu em 2003, quando um grupo de arqueólogos desenterrou fósseis de uma espécie que antecedeu em milhares de anos os humanos modernos. Com metade da altura de um indivíduo contemporâneo, crânio pequeno, braços longos e os pés desproporcionalmente grandes, esses seres se pareciam muito com os hobbits que habitam o épico O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien.
Os ossos foram encontrados na Indonésia, em uma caverna na Ilha de Flores. A equipe de pesquisadores acabou batizando a espécie de Homo floresiensis, em homenagem à localidade onde descansavam os fósseis. A crônica da descoberta conta que dois outros nomes foram considerados, Homo hobbitus e Homo floresianus. Este último foi descartado por induzir a uma percepção errada, e o primeiro porque os cientistas achavam que a referência aos personagens de Tolkien seria banalizar demais o achado. Agora, mais de vinte anos depois, novas evidências lançam luz sobre nossos ancestrais. “Qualquer novo fóssil de hominídeos é como um tesouro científico”, disse a VEJA o arqueólogo Adam Brumm, coautor do estudo publicado na Nature Communications. “Há mais de dez anos, estávamos atrás desses ossos.”
A equipe, da qual Brumm faz parte, descobriu os novos vestígios desses ancestrais na caverna de Mata Menge, a cerca de 70 quilômetros de onde os ossos do Homo floresiensis foram encontrados. Essas evidências confirmam que a espécie prosperou naquele local por muito mais tempo do que se imaginava. Enquanto os primeiros fósseis tinham cerca de 55 000 anos, os mais recentes remontam a 700 000 anos atrás, sugerindo que os indivíduos perambularam pela região por mais do que o dobro de tempo que o Homo sapiens perdura — 300 000 anos. E sempre foram pequenos: a nova evidência, um úmero, osso da parte superior do braço, pertenceu a um adulto com 1,08 metro de altura, bem menor que os descobertos anteriormente, com até 1,21 metro.
No meio científico, o debate esquentou. Altura reduzida em indivíduos que habitam ambientes insulares é algo esperado devido à escassez de recursos. Ferramentas encontradas no local há mais de uma década sugeriam que seres habilidosos ocuparam essa parte da Indonésia há pelo menos 1 milhão de anos. Até agora, no entanto, ainda não havia certeza sobre a origem deles. Quando o Homo floresiensis foi encontrado, suspeitou-se que era apenas humano comum com alguma alteração genética, enquanto outra tese defendia que se tratava de descendente de uma espécie ainda desconhecida. “Os dentes descobertos pelos pesquisadores favorecem muito a interpretação de que esse grupo, na verdade, derivava da espécie Homo erectus que vivia na Ilha de Java”, afirma o antropólogo Danilo Vicensotto Bernardo, professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Ainda não há unanimidade no meio acadêmico. “É um ótimo trabalho, mas são evidências muito escassas, baseadas em apenas dois dentes”, disse o arqueólogo Walter Neves, conhecido como o “pai de Luzia”, o fóssil mais antigo das Américas. “Não é suficiente para descartar a ideia de que o Homo floresiensis pode ser descendente do Homo habilis.” Seja como for, a diversidade foi importante para a perpetuação do Homo sapiens. Por isso, temos muito o que aprender com os nossos ancestrais.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905