Implante cerebral anunciado por Musk abre polêmica científica
Cientistas pedem cautela e garantem que isso não é novo
Diante de tudo com que tem de lidar ultimamente, surpreende a resiliência de Elon Musk e sua irrefreável disposição de se enroscar em controvérsias. Depois de comprar o Twitter e desagradar a milhões de usuários com seus planos para a rede social, o dono da Tesla e da SpaceX — dois de seus negócios de melhor desempenho até o momento — quer agora impulsionar a Neuralink, empresa de neurotecnologia que fundou em 2016 com oito sócios. No fim de novembro, o bilionário fez a apresentação dos resultados de um ambicioso projeto desenvolvido na companhia sediada em São Francisco, nos Estados Unidos. Nela, mostrou o que um implante cerebral seria capaz de realizar.
Na experiência, os aparelhos miniaturizados foram instalados no topo do crânio de dois macacos de laboratório, com eletrodos que penetram cerca de 3 milímetros no córtex, a camada externa do cérebro. Os animais teriam conseguido mover cursores de computador usando estímulos elétricos dos neurônios e a interface digital. Embora trazido aos holofotes com grande estardalhaço por seu promotor, esse tipo de conquista não é exatamente inédito. A literatura acadêmica mostra estudos anteriores, como o conduzido em 2006 pelo neurocientista americano Leigh R. Hochberg, da Universidade Brown, ligando pacientes a suas próteses neuromotoras por meio de cabos.
Na verdade, nem é preciso ir tão longe, já que aqui mesmo, no Brasil, o médico Miguel Nicolelis, que criou o primeiro exoesqueleto controlado pela mente — o aparelho foi demonstrado em plena arena do Corinthians antes do jogo de abertura da Copa de 2014 —, havia participado de pesquisas semelhantes. Naquele mesmo ano, Nicolelis assinou com outros cientistas um estudo divulgado na revista Nature Methods com a descrição dos resultados práticos das interfaces cérebro-máquina testadas por macacos. Em entrevistas recentes a publicações americanas, o pesquisador brasileiro não economizou críticas a Elon Musk e seu projeto na Neuralink: “Ele vende coisas que já foram inventadas antes e tenta dizer que fez algo incrível”.
A Neuralink, de fato, não está sozinha na empreitada. Outra companhia americana, a BrainGate, desenvolve desde o início dos anos 2000 um sistema de implante cerebral projetado para ajudar pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ALS) e lesão medular espinhal que perderam o controle de membros ou outras funções corporais. Implantado no encéfalo, o aparelho monitora a atividade cerebral do paciente e converte a intenção do usuário em ordens para o computador. No início do ano passado, tornou-se a primeira tecnologia a transmitir comandos sem fio de um cérebro humano para um computador. De acordo com registros, o teste clínico utilizou dois participantes com lesões na medula espinhal.
O problema a ser superado, explicam os especialistas, é criar um implante tão pequeno, maleável e potente que não dê margem a traumas no cérebro. O que a Neuralink está tentando é justamente superar essa barreira. “São meros miniaturizadores”, diz o professor Mario Gazziro, da Universidade Federal do ABC e respeitado estudioso do assunto. “Não estão trazendo nada de realmente novo da academia para o mercado.” Entre 2010 e 2017, o pesquisador fez parte de um consórcio científico que testou uma inédita interface neural.
Por diferentes razões, a Neuralink e Musk se encontram na mira da comunidade científica, de empresas tecnológicas envolvidas em pesquisas parecidas e até de organizações que lutam por direitos dos animais. A empresa está sob investigação federal por supostas violações de bem-estar dos macacos em meio a reclamações internas de que os testes estão sendo apressados e, portanto, insuficientes para comprovar a eficácia dos implantes. Além disso, o sistema não tem aprovação da agência sanitária e alimentícia americana, a Food and Drug Administration (FDA), nem para realizar testes clínicos em humanos, nem para a venda do dispositivo. O empresário disse há alguns dias que deu entrada nos papéis para acelerar o processo. Toda cautela, no entanto, é necessária, uma vez que se trata de servir à saúde das pessoas e não à vaidade do polêmico empresário.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820