Medicina avança com sequenciamento completo do genoma humano
Depois de três décadas, missão hercúlea é concluída, abrindo mais um caminho para a prevenção de doenças hereditárias
Existe dentro de você e de todos os seres vivos uma molécula especial chamada DNA, cuja sigla em inglês responde por ácido desoxirribonucleico. Como um código de computador, ela contém toda a informação necessária para formar e manter um organismo. Na verdade, no ser humano há cerca de 3 bilhões de pares de DNA, distribuídos em aproximadamente 30 000 genes que definem quem a pessoa é fisicamente e, pelos menos em parte, psicologicamente. Alguns tipos de genes, com suas hélices de milhares e até milhões de pares de DNA, determinam a cor dos olhos ou dos cabelos de uma pessoa, sua altura e tamanho de tronco e membros. Essas características são herdadas dos pais e, teoricamente, poderiam ser editadas e modificadas em um processo de engenharia genética que também eliminaria doenças hereditárias escondidas em nível molecular. Entender esse processo, no entanto, não é tarefa fácil. Há décadas, cientistas buscam sequenciar o genoma humano, uma missão hercúlea que consiste em ordenar milhões de peças de um gigantesco quebra-cabeça, que jamais ficaria pronto sem a ajuda da tecnologia. Há poucos dias, entretanto, a pesquisa subiu de patamar. Um consórcio de cientistas de cerca de trinta instituições, chamado Telomere-to-Telomere (T2T) — em referência ao telômero, que é a extremidade do cromossomo —, publicou a versão preliminar de um artigo que descreve o primeiro sequenciamento completo, no qual foi adicionado o material genético que faltava. Os pesquisadores adicionaram 200 milhões de pares de DNA e 115 genes ao trabalho do Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990.
Nos dias que se seguiram, a equipe do T2T ganhou as manchetes. “É um marco tremendo”, definiu a VEJA George Church, geneticista de Harvard. “Além disso, o custo foi muito menor do que o da versão de duas décadas atrás.” O passo, de fato, é imenso. No ano 2000, os cientistas do projeto original anunciaram que o esboço do genoma humano estava concluído, o que foi recebido com entusiasmo pela comunidade científica. O primeiro-ministro britânico Tony Blair chegou a vir a público para dizer que a conquista se equiparava a alcançar o topo do Himalaia. Todavia, a versão obtida estava incompleta: ainda faltavam 15% de sequenciamento. Três anos mais tarde, o projeto foi dado como concluído, ainda faltando 8% de conteúdo.
O avanço espetacular promovido pelo T2T só foi possível graças a uma nova tecnologia a laser capaz de escanear longos trechos de DNA com até 20 000 pares de cada vez. O processo convencional permitia o sequenciamento de apenas algumas centenas por etapa. Karen Miga, geneticista e codiretora do consórcio, destaca a importância do trabalho realizado, já que, até então, os estudos na área estavam sendo feitos sobre uma base incompleta. “Os trechos de DNA faltantes ficaram fora do alcance de estudos patológicos, ausentes das pesquisas e ocultos do mundo. Agora podemos começar a incorporá-los e nos perguntar que papéis eles têm em determinadas enfermidades”, esclarece a cientista.
Desenvolver novos recursos para combater ou inibir o surgimento de doenças hereditárias é o que justifica o investimento de tempo, dinheiro e pessoal no sequenciamento do genoma. Certos tipos de câncer e doenças autoimunes, que não podem ser combatidas com antibióticos, bem como o Alzheimer, manifestam-se mesmo com o indivíduo gozando de boa saúde, e a cura para esses males poderia ser obtida no campo de batalha genético — o que explica por que o trabalho não vai parar por aqui, longe disso. O T2T anunciou também ter se unido a um outro grupo, o Human Pangenome Reference, para realizar novos sequenciamentos de povos com características diferentes, em busca de diversidade. Afinal, o futuro da medicina passa por cuidados precoces e a melhor prevenção está gravada nos códigos que compõem os genes da espécie humana. Eis a beleza da ciência.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744