Minissérie mostra complexidade shakespeariana de relações entre chimpanzés
O tema de produção disponível na Netflix é a disputa de poder entre grupos de primatas rivais de Uganda
Poderia ter acontecido nos salões do castelo de Elsinore, no antigo reino da Dinamarca, em meio às intrigas palacianas envolvendo o príncipe Hamlet. Na verdade, a tragédia se passa na contemporânea floresta tropical do Parque Nacional de Kibale, em Uganda. Lá vive a comunidade Ngogo, o maior grupo conhecido de chimpanzés do mundo, que chegou a reunir quase 200 indivíduos em uma única sociedade. Não faz muito tempo, ocorreu uma grave cisão que os dividiu em dois clãs opositores, o Central e o Ocidental. A disputa por poder e por território que se seguiu foi registrada ao longo de um ano e meio por James Reed, o mesmo diretor do premiado Professor Polvo (2020). Testemunha de uma trama intrincada, o cineasta condensou tudo o que viu, com os contornos shakespearianos adequados e a narração minimalista do ator Mahershala Ali, na minissérie documental O Império dos Chimpanzés, disponível na Netflix.
Como os humanos, os chimpanzés vivem em grandes grupos e se envolvem em relacionamentos cooperativos e antagônicos ao longo de suas vidas. Reed explora essa característica e injeta dramaticidade no enredo símio, que se adensa a cada um dos quatro capítulos disponíveis na plataforma. Impossível não se identificar com as narrativas dos dois grupos, rivais entre si e vítimas de suas próprias estruturas de poder, patriarcais e clientelistas. O que não falta são paralelos com a cizânia humana. Líder dos centrais, o macho alfa Jackson não desgruda de seu lugar-tenente, o gigantesco Miles. Eles são observados de perto pelo jovem Abrams, que um dia ambiciona ocupar o lugar mais alto na hierarquia de seu clã. Já entre os ocidentais, os personagens principais são Hutcherson, inexperiente mandachuva da área, e seu conselheiro, o veterano Garrison. Em torno deles gravita Richmond, que deixou a liderança após ter a mão decepada por caçadores.
Antes da divisão entre os grupos, Reed acompanhou a comunidade e fez um documentário sobre eles, Chimpanzés Guerreiros de Uganda (2017), no qual registrou a complexa teia social que os mantinha unidos. “Iniciamos o estudo dos chimpanzés Ngogo em 1995”, disse a VEJA John Mitani, pesquisador e consultor científico do filme e da minissérie. “Na época, o grupo era grande, com mais de 100 indivíduos. Até que, em 2018, atingiu mais que o dobro de integrantes e acabou se dividindo.” Jackson, o impetuoso líder dos centrais, foi responsável pelo racha. Ele costumava fazer parte dos ocidentais, até que se separou para formar o seu próprio clã. Por isso, é “jurado de morte”. Hutcherson acabou assumindo posto vago e estabeleceu uma estrutura mais igualitária no grupo. Entre outras coisas, permitiu que as fêmeas participassem de tarefas mais delicadas, como o patrulhamento das fronteiras.
Os chimpanzés selvagens crescem lentamente, reproduzem-se relativamente tarde na vida e podem ultrapassar os 60 anos de idade. Além disso, são difíceis de seguir porque se movem por grandes territórios em terrenos acidentados. Tudo isso torna complicado filmá-los, mas Reed e sua equipe conseguiram superar esse obstáculo e registraram cenas ao mesmo tempo bonitas e trágicas — mas sem espaço para a violência gráfica, registre-se. Ele trabalhou com quatro operadores de câmera. Cada um dos grupos de chimpanzés era acompanhado por duas equipes. “Foi um esforço sem precedentes”, disse Mitani.
Com nomes de músicos de jazz, de atrizes de Hollywood e até de amigos dos pesquisadores que os acompanham há 25 anos, os chimpanzés de Ngogo poderiam facilmente homenagear personagens como Hamlet, Horácio, Cláudio, Laerte e Polônio. Estariam, inclusive, dentro de seus papéis na tragédia que viveram nos últimos três anos, incluindo mortes trágicas, nascimentos inesperados e alguns desaparecimentos. “Dentro da sociedade Ngogo, há muitos indivíduos dos quais você pode se distanciar e apenas observar com curiosidade, mas também há personagens que vão tocar as pessoas em diferentes níveis”, disse Reed. Shakespeare não faria melhor.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842