Mistério revelado
Durante anos, só cientistas podiam visitar o Arquipélago de Alcatrazes, no litoral de SP. Agora, sua natureza exuberante está aberta a viagens guiadas
Recortado por praias extensas e pontilhado por balneários repletos de opções gastronômicas e noturnas, o litoral norte de São Paulo reserva uma surpresa mesmo para quem acha que já viu de tudo ali: a menos de 50 quilômetros dos portos de Ilhabela e São Sebastião descortina-se um arquipélago com treze ilhas e recifes cercados de água cristalina e povoados por 1 300 espécies de aves, répteis, anfíbios, peixes e plantas. Seu nome: Alcatrazes (nada a ver com a prisão americana de Alcatraz), local descrito por cientistas como um santuário natural de biodiversidade comparável à de Galápagos — o arquipélago equatoriano localizado na costa do Pacífico onde, no século XIX, Charles Darwin começou a matutar sobre sua hoje consagrada teoria da evolução.
Há quase dois meses, o paraíso de Alcatrazes foi aberto ao público e causou impacto entre os primeiros visitantes. “Desde pequena eu sonhava em vir aqui”, diz a economista Cristina Martins, de 41 anos, que avistava o misterioso aglomerado de ilhas da casa da avó, em Ilhabela. “É deslumbrante.” O nome vem de um dos pássaros mais frequentes no local, o alcatraz, que em árabe quer dizer mergulhador, por sua habilidade em entrar no mar em busca de alimento. Como um lugar tão belo e único se manteve por tanto tempo inexplorado estando tão perto de uma zona de turismo fervilhante? O motivo é que a Marinha, dona da área, sempre limitou a circulação no arquipélago, abrindo as portas apenas para pesquisadores.
Os estudiosos passaram a frequentar Alcatrazes maciçamente nos anos 80, com dois objetivos: expandir o conhecimento da biologia e sensibilizar autoridades para que fosse erguida uma zona exclusiva de proteção ambiental. Por três décadas, a maravilha foi base para treinamento de tiros da Marinha, o que afugentava os animais e chegou a provocar um incêndio em 2004. Hoje, a Marinha ocupa espaço reduzido no arquipélago, e Alcatrazes ganhou status de refúgio de vida silvestre, vigiado pelo ICMBio, braço do Ministério do Meio Ambiente, como queriam os acadêmicos.
Apesar da abertura ao turismo, não cogite pegar um barco particular e embrenhar-se pelas águas. Até agora apenas duas empresas têm autorização para operar o passeio a Alcatrazes, que ocorre de quarta a domingo. E mesmo assim elas obedecem a certas regras. A primeira: em nome da preservação, não se pode caminhar nas ilhas. A permissão, aliás, não ajudaria muito, pois se trata de terreno acidentado, repleto de morros e sem trilhas. Mas estar frente a frente com a natureza de lá já vale a viagem (que, calma, está só começando). O barco de cruzeiro a motor com capacidade para quarenta pessoas leva três horas para chegar às cercanias do arquipélago, trajeto em que o visitante pode ser brindado com a visão de baleias — a rota migratória de jubartes, orcas, francas e brydes passa justamente por ali — e golfinhos, que seguiram a expedição da reportagem de VEJA por 1 quilômetro.
Apreciadores da natureza vão se esbaldar com a quantidade de fragatas (nas ilhas fica o maior ninhal do Atlântico Sul) e, claro, alcatrazes (também conhecidos como atobás). A profusão de bromélias agarradas ao relevo tem tons que se confundem com o das rochas. O arquipélago guarda 100 espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção e vinte endêmicas, ou seja, que não existem em nenhum outro canto do planeta — entre elas, perereca, rã e jararaca, todas “de-alcatrazes” na nomenclatura oficial. “A ilha foi isolada do continente há 12 000 anos. Isso fez com que fauna e flora passassem por processos evolutivos que levaram ao aparecimento de novas espécies aqui”, explica a bióloga Kelen Luciana Leite, diretora do Núcleo de Gestão Integrada de Alcatrazes. Ela enfatiza a relevância do local para a ciência brasileira: “Alcatrazes formou os mais respeitados pesquisadores da vida marinha no país”.
Se as ilhas fornecem ângulos espetaculares (um deles é o Pico da Boa Vista, que se assemelha na forma ao Pão de Açúcar, sendo 80 metros mais baixo), um mergulho nas redondezas abre as janelas para um exuberante mundo marinho. É imperdível pela vastidão de cores e variedade de peixes, 259 espécies — número incomparável ao de qualquer outro lugar no Brasil —, um quarto delas considerado raro. A sensação é de estar dentro de um aquário, rodeado por peixes-papagaio, frades, tartarugas marinhas, estrelas-do-mar e ouriços enormes. Como não há vento nem chuva, a visibilidade é de altíssimo realismo. “Fiquei impressionada com o tamanho dos animais, muito maiores do que os que vi em outros lugares”, observa a bancária Tatiana Miranda, de 36 anos, que já testou as águas de Cuba, México e Tailândia e subiu encantada à superfície.
Há duas modalidades disponíveis para explorar o mundo subaquático do arquipélago: uma é à base de snorkel, sem restrição de idade (550 reais, com quatro refeições incluídas em um passeio de dia inteiro), e a outra com cilindro (650 reais), que permite descer a 30 metros de profundidade. Quanto mais fundo, mais as espécies se exibem; arraias-manta e tubarões-martelo frequentam esse ecossistema (são inofensivos, segundo os guias, já que bem alimentados em seu hábitat). Aos interessados em investigar as profundezas é requerido um certificado de mergulho, obtido com um curso básico que dura em média três dias. Mesmo assim, quem se lança mar adentro vai sempre acompanhado de um profissional que monitora grupos de não mais que quatro pessoas. É bom esclarecer que a aventura em nível moderado, usando o snorkel, também fornece fartura de vida marinha. “A diversidade que o mar de Alcatrazes oferece não decepciona ninguém”, garante o experiente Rodrigo Braga, mergulhador da empresa Colonial Diver.
Cerca de 2,5 milhões de anos atrás, Alcatrazes não era ilha, mas uma montanha fincada em meio à Mata Atlântica. No lugar de água, um imenso vale a cercava. Depois do derradeiro período glacial, o mar elevou-se e foi isolando o que hoje é o arquipélago. Demorou para que ele entrasse no mapa. O primeiro a registrar sua presença foi o expedicionário português Pero Lopes de Sousa, em 1530. Ao longo dos séculos, pesquisadores retiraram de Alcatrazes conhecimento e experiência. Que o turismo, cuidadoso e consciente, mantenha o paraíso tal qual a natureza o fez.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
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