Nós, humanos, estamos sozinhos no universo? Esse questionamento de cunho científico e filosófico sempre me fascinou. A curiosidade me fez seguir a carreira de astrofísica e me tornei uma caçadora de moléculas que indiquem a presença de vida em outros planetas. Há uma década, decidi derramar atenção sobre um composto específico, a fosfina. Aqui na Terra, trata-se de um gás incolor, malcheiroso e extremamente tóxico, que resulta da decomposição de matéria orgânica. É, portanto, um marcador importante de vida, que se manifestaria na forma de bactérias. Descobrir que a substância estava lá, na atmosfera de Vênus, um planeta vizinho, me deixou em estado de choque. A ciência é assim: você pode passar uma existência cavucando um ponto e de lá não sair nada. Neste tempo em que me dediquei à hipótese de vida em Vênus, o assunto era visto com desdém pela comunidade acadêmica. Dei palestras e escrevi artigos sobre o tema, mas não despertavam interesse. Ganhei até um apelido: Doutora Fosfina. Era um trabalho árduo e solitário cujo sucesso, para ser sincera, achava improvável.
Tudo mudou há um ano, quando fui procurada pela astrônoma Jane Greaves, da Universidade de Cardiff, no Reino Unido. Recebi um e-mail em que ela dizia: “Clara, você é expert em fosfina e acabei de achar essa molécula em Vênus. Isso é estranho, certo?”. Respondi imediatamente: “Você tem certeza? É uma loucura. Se estiver certa, será fantástico, mas deve haver algum erro”. Esse foi o início de uma força-tarefa que envolveu cientistas dos Estados Unidos, do Reino Unido e do Japão. Convivemos meses com a angústia de uma dúvida crucial: se há de fato fosfina em Vênus, seria este um sinal inequívoco de vida? Tratamos a hipótese com ceticismo e colocamos novas hipóteses à mesa. Será que fora um raio cósmico que interagiu com a atmosfera de Vênus? Ou algum evento desencadeado pelo Sol? Avançamos e comprovamos que era mesmo fosfina. E assim o estudo foi publicado na revista Nature Astronomy.
Humanos são excessivamente antropocêntricos. Entendemos a vida como algo que tenha de ter relação conosco. Mas não há razão para o universo somente criar existências que nos pareçam agradáveis. Em nosso próprio planeta, há seres que produzem gases tóxicos, como os que habitam as profundezas abissais dos oceanos. Quero que a comunidade científica pense além das formas de vida que enxergamos como ideais. Afinal, a possibilidade de esbarrarmos com alienígenas que cheirem bem é quase zero. Terra e Vênus têm características em comum — em certos pontos, a temperatura lá é de 30 graus, muito semelhante ao verão no Brasil (embora na maior parte do planeta atinja os 400 graus). As atmosferas, porém, são completamente distintas. Se confirmarmos a existência de vida nesses dois astros tão diversos, a hipótese de ela ser plausível em outros cantos da galáxia, onde orbitam bilhões de planetas, não é pequena. Ao contrário, parece inevitável.
Em nome do rigor científico, faremos ainda uma vasta investigação até cravar que aquele sinal encontrado em Vênus é, concretamente, vida. Também temos de observar se existem outras moléculas por lá. As tais bactérias, se confirmadas, fazem parte de um ecossistema, que produz demais compostos químicos. Empreender essa busca a distância, com telescópios, é missão complicada. Nosso grupo elaborou uma lista com mais de 16 000 moléculas que podem indicar vida fora da Terra. Fiz um cálculo que dá a dimensão do desafio: se investir o mesmo tempo que empreguei no caso da fosfina para investigar todas elas, gastaria 62 000 anos apenas com Vênus. Mas não estou mais sozinha. Há um monte de gente por aí na mesma aventura. A jornada está no princípio, mas tenho certeza de que abrimos uma porta para a humanidade dar um salto no saber e se colocar em perspectiva na imensidão do universo.
Clara Sousa, em depoimento dado a Ernesto Neves
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709