Na maior das jornadas, William Shatner prova potencial do turismo espacial
O ator de 90 anos, que interpretou o capitão Kirk na série 'Star Trek', é agora a pessoa mais velha a entrar em órbita
“Eu espero nunca me recuperar disso. É algo muito maior do que eu e a vida, a mais importante e profunda experiência que já tive.” Foi assim, em êxtase, que o ator William Shatner descreveu o que sentiu durante os breves onze minutos do voo a bordo da nave New Shepard, que o levou na semana passada para um passeio no espaço, de onde contemplou a imensidão azul da Terra. A emocionante declaração não partiu de um viajante qualquer. Shatner tem 90 anos — é agora a pessoa mais velha a entrar em órbita — e foi uma das estrelas da série de televisão Star Trek (conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas), interpretando o astuto capitão James Kirk. Supõe-se, portanto, que não faltaram experiências fantásticas na longa e produtiva vida de Shatner. Mesmo assim, nenhuma delas, como ele mesmo destacou, se compara ao que viveu nos últimos dias.
A viagem de Shatner foi uma jogada de mestre do empresário Jeff Bezos, fundador da Amazon e da Blue Origin, a empresa que está cumprindo a promessa de levar pessoas comuns para o espaço. Desde o nascimento da companhia astronáutica, no ano 2000, Bezos havia assegurado que não demoraria para o turismo espacial virar realidade. Muitos duvidaram, mas ele estava certo. Na verdade, foram necessárias apenas duas décadas para o projeto ser levado adiante — quase nada em face de sua complexidade. O primeiro voo suborbital da Blue Origin com tripulantes foi realizado em 20 de julho, data que também marca o aniversário da chegada do homem à Lua. Bezos era um dos passageiros da nave.
Se estivessem vivos, como reagiriam o soviético Iuri Gagarin (1934-1968) e o americano Neil Armstrong (1930-2012), protagonistas da corrida espacial no auge da Guerra Fria, ao saber que um famoso ator nascido na mesma época que eles também contemplaria a Terra de cima, sem jamais ter se preparado para isso, apenas por diversão e uma certa dose de marketing? Nunca saberemos a resposta, mas o fato é que as viagens espaciais entraram em uma nova era, impulsionada pela iniciativa privada.
É inegável o potencial financeiro de programas turísticos como esses. Bezos não revela valores, mas estima-se que a Blue Origin cobrará 250 000 dólares para o passeio orbital de dez minutos. Empresários e profissionais bem-sucedidos, portanto, não teriam dificuldade para comprar os bilhetes. “Trocamos uma corrida espacial bipolar nos anos 1960 por iniciativas comerciais que não dependem de dinheiro público”, diz Rodrigo Nemmen, professor de astrofísica da Universidade de São Paulo.
O espaço, de fato, tem se tornado uma nova fronteira financeira. Elon Musk, dono da Tesla, garante que a sua SpaceX levará civis para Marte em um futuro não muito distante — e certamente cobrará caro por isso. Richard Branson, fundador do Grupo Virgin, criou um braço astronáutico, a Virgin Galactic, que pretende transportar turistas para a Estação Espacial Internacional, acirrando a corrida que, ao menos por ora, vem sendo liderada pela Blue Origin, de Bezos.
A indústria do cinema quer aproveitar a onda e, por ironia, parece disposta a resgatar os velhos embates da Guerra Fria. No último dia 5, a atriz Yulia Peresild e o diretor Klim Shipenko, ambos russos, chegaram à Estação Espacial Internacional para rodar o primeiro filme a ser produzido no espaço. A missão resultará no longa-metragem The Challenge (O Desafio, em português), em que Yulia interpretará uma médica cuja presença foi solicitada na Estação para salvar a vida de um cosmonauta. Shipenko afirma sonhar com a realização de uma sequência do longa, desta vez filmado em Marte. Shatner e o capitão Kirk poderiam participar do projeto. Spock, outro inesquecível personagem de Star Trek, ficaria orgulhoso.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760