Novas descobertas arqueológicas trazem revelações sobre região amazônica
No passado remoto, a área foi densamente povoada, com cidades complexas e conectadas entre si
Até hoje, os livros didáticos insistem em estabelecer que o início da história do Brasil se deu com a chegada dos europeus, em 1500. Por essa visão, foi só após o desembarque dos portugueses que aquela “terra selvagem” — para usar a expressão consagrada nos cânones educativos — começou a ser desbravada com a criação de cidades e a expansão progressiva mata adentro até a Amazônia, no extremo norte do país. Nada poderia estar mais distante da realidade. Não apenas a Amazônia foi densamente povoada muito antes da invasão europeia como a sua atual configuração deve-se à ação do homem durante milhões de anos. Para ficar mais claro: a monumental floresta que conhecemos é consequência direta do trabalho dos povos que lá viveram.
Essas são algumas das descobertas descritas no livro Sob os Tempos do Equinócio: Oito mil Anos de História na Amazônia Central (Editora Ubu), do arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Durante quinze anos, com o apoio de uma equipe numerosa, ele se dedicou à escavação de sítios na Amazônia Central, e assim se tornou um dos principais pesquisadores do tema no Brasil. “Sabemos que a Amazônia é habitada há pelo menos 8 000 anos, há tanto tempo quanto em outras partes das Américas, por diferentes povos, com distintas formas de organização social e política, desde bandos nômades de caçadores-coletores até sociedades sedentárias hierarquizadas”, afirma Neves.
Seus estudos concluíram que entre 8 e 10 milhões de pessoas viveram na Amazônia no período anterior à chegada dos portugueses. Ao contrário de outras civilizações americanas, a distribuição demográfica era mais ampla. Não havia metrópoles, mas inúmeras cidades menores e relativamente populosas. Um exemplo é Santarém, no atual Pará. Fundada em 1661, foi um dos primeiros municípios da região amazônica. Na ocasião, 6 000 indígenas viviam ali, população quatro vezes maior que a do Rio de Janeiro na época.
Para calcular o contingente que habitou a Amazônia, Neves baseou-se em vestígios da ocupação humana de outrora. Artefatos de pedra e cerâmica extremamente refinados, hoje guardados em museus, são alguns deles. Mas há muito mais. É o caso da terra preta, tipo de solo que indica as modificações feitas pela ação humana — são, em síntese, assentamentos de povos que fincaram raízes em determinado local. Outro exemplo é o manejo da floresta. Hoje em dia, mais da metade de todas as árvores na selva amazônia corresponde a apenas 227 espécies, o equivalente a 1,4% das 16 000 espécies conhecidas na região — isso prova, de acordo com o pesquisador, que algumas delas foram priorizados pelos humanos em detrimento de outras. “A ideia, ainda muito difundida, de uma formação florestal virgem, intocada, não corresponde à realidade”, diz Neves. “As florestas amazônicas são produtos da ação humana. O manejo criou a composição de árvores que existe hoje.”
Não é de hoje que a ciência se dedica ao estudo da ocupação na Amazônia. As pesquisas mais abrangentes começaram em 1970, quando um grupo de arqueólogos passou a analisar os chamados geóglifos, estruturas geométricas moldadas por povos indígenas com o uso de instrumentos de madeira. Desde então, foram mapeadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural ao menos 818 figuras quadrangulares e circulares com mais de 150 metros de largura. Hoje, acredita-se que tais estruturas eram espaços de socialização, um lugar para trocar conhecimento e interagir com outros povos.
Apesar dos avanços da ciência, a região amazônica é um gigantesco campo a ser explorado — no bom sentido, ressalte-se. Dada a densidade da floresta e as imensas dificuldades para acessá-la, é certo que o local oculta vestígios raros de povos antigos. “Talvez a lição mais importante trazida pela arqueologia amazônica nas últimas décadas tenha sido mostrar que não existe na região nenhuma barreira natural à ocupação humana”, escreveu Neves em seu livro. Desvendar o passado, portanto, pode ajudar as novas gerações a entender que é possível viver em harmonia com a natureza.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808