Novo campo da ciência investiga como a paternidade transforma o cérebro
As descobertas sugerem que, quanto maior o contato com os filhos, mais intensas são as mudanças
Não é de hoje que a neurociência mergulha no cérebro feminino para identificar transformações ocorridas durante a gestação, o nascimento e os primeiros anos de um filho. O ponto central das pesquisas era determinar a natureza e a magnitude das alterações que esse período crucial na vida da mulher promove no funcionamento dos circuitos das células nervosas cerebrais. As conclusões já foram capazes de compor um retrato detalhado de como a maternidade molda o cérebro para que corpo e mente cuidem, exclusivamente, da prole — uma imposição evolutiva, que prioriza a sobrevivência da espécie. Um fenômeno recente, porém, veio ampliar o foco dos estudos na área: a crescente participação do pai na criação dos filhos. Essa virada comportamental histórica despertou nos especialistas o interesse em saber se haveria nos pais impactos semelhantes aos provocados nas mães. O campo de estudo é recentíssimo, mas os achados revelam que, sim, as mudanças culturais impulsionam adaptações na forma como o cérebro masculino opera. Em linhas gerais, começa a se comprovar que a cabeça do pai, à sua maneira e em sintonia com os novos tempos, também se molda de forma a acolher e proteger a prole.
O mais recente trabalho sobre alterações no cérebro masculino em consequência da paternidade foi conduzido por pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, e do Instituto de Investigação Sanitária Gregorio Marañón, de Madri, na Espanha. Usar voluntários de países de culturas tão diferentes daria aos pesquisadores a chance extra de detectar se eventuais modificações estariam relacionadas aos hábitos e crenças de cada um. Foram recrutados quarenta homens — vinte espanhóis e vinte americanos. Todos foram submetidos a exames de ressonância magnética durante a gravidez da parceira e seis meses após o nascimento do bebê. Além deles, dezessete homens sem filho serviram como grupo de controle.
As primeiras alterações detectadas não chegaram a surpreender os cientistas. É natural que o cérebro reaja a novas situações tentando se adaptar e para isso crie caminhos neuronais diferentes. Trata-se de um fenômeno que os neurocientistas chamam de plasticidade cerebral induzida por experiências, um movimento que se verifica, por exemplo, quando se aprende uma língua ou se desenvolve uma nova habilidade. Outras características, no entanto, se mostraram mais intrigantes. Uma delas foi o fato de as transformações detectadas serem exatamente as mesmas em americanos e espanhóis. “Ficamos surpresos em verificar sua ocorrência em homens de países tão diferentes”, disse a VEJA a psicóloga Darby Saxbe, da Universidade do Sul da Califórnia, uma das autoras da pesquisa. A constatação revela, de acordo com Saxbe, que os gatilhos que desencadeiam as mudanças cerebrais masculinas são universais, como também são os fatores que originam modificações no cérebro feminino em qualquer ponto do planeta.
Em mulheres que tiveram filhos, regiões como o sistema límbico, onde se processam emoções e também respostas a ameaças, ganham força. Até por isso, a maior parte do trabalho de cuidado e criação da prole segue sob sua responsabilidade. Mas nas novas gerações, sobretudo as que vivem nos grandes centros urbanos, prevalece agora o entendimento de que a formação dos filhos é uma tarefa para ser dividida entre os dois — um conceito revolucionário em que o homem, pela primeira vez, adiciona à função de provedor a de cuidador. Um levantamento realizado pelo instituto de pesquisas americano Pew Research Center apontou um aumento expressivo no tempo que, nos Estados Unidos, os homens passam com seus rebentos atualmente — cerca de oito horas semanais, em comparação à média de duas horas por semana registrada meio século atrás.
O impacto cerebral gerado pela chegada dos herdeiros se dá de forma diferente entre homens e mulheres. Conforme demonstram as pesquisas, as mudanças nelas começam na gravidez e estão relacionadas à proteção e sobrevivência da prole e à formação de vínculo afetivo imediato. Já nos pais o processo é iniciado em geral após o nascimento, momento em que o cérebro aciona regiões associadas à empatia — é preciso criar ou fortalecer o laço com o bebê —, ao processamento dos sentimentos e ao sistema de recompensa, responsável por cristalizar o prazer de cuidar do rebento. Ao mesmo tempo, são estimuladas nos pais as estruturas que ajudam no planejamento e na execução de ações, bem como os campos que interpretam informações visuais — tudo voltado para que o homem se torne apto a acolher e tomar conta do bebê com rapidez e praticidade. Variações hormonais, comuns nas mulheres, também são observadas nos pais dos recém-nascidos. O nível de testosterona, hormônio responsável pelas características masculinas e associado a maior agressividade, cai. Em compensação, sobem as taxas de prolactina, que facilita o relaxamento, e de ocitocina, que atua no fortalecimento dos vínculos afetivos.
A extensão e a potência desses processos não são uniformes, uma variação que pode ter a ver com a quantidade de tempo passado com a criança ou com a motivação por trás da interação. Um dado concreto é que as modificações foram mais marcantes entre os espanhóis, que desfrutam dezesseis semanas de licença paternidade, do que entre os americanos, que não contam com uma lei que lhes assegure dias de afastamento remunerado. De modo geral, porém, o impacto da relação pai e filho sobre o cérebro foi menos intenso do que o identificado nas mulheres. Isso sugere que o grau de envolvimento dos homens com sua prole tem espaço para se tornar mais relevante, abrindo a expectativa de relacionamentos mais prazerosos ainda no futuro. A saudável revolução na direção do exercício pleno da paternidade está em andamento. E, do ponto de vista científico, está provado que o cérebro masculino se encontra aberto a se adaptar aos novos tempos.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819