Novos estudos apontam o local de origem da peste negra
Pesquisas sugerem que a doença não dizimou metade da Europa, como se supunha até agora
O poeta italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor da obra-prima Decamerão, descreve em seu monumental romance um dos períodos mais sombrios da história da humanidade. Na narrativa realista, Boccaccio relata como a peste negra chegou à Europa. “Na cidade de Florença, a mais bela de todas da Itália, ocorreu uma peste mortífera que começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao Ocidente.” A pandemia que matou em quatro anos cerca de 25 milhões de pessoas no Velho Continente sempre suscitou dúvidas a respeito de sua origem. Os pesquisadores, assim como Boccaccio, costumeiramente se referiam à Ásia como ponto de partida, mas o local exato do nascedouro da peste jamais havia sido determinado. Recentemente, uma nova incursão científica jogou luz sobre a polêmica questão e avançou no tema.
O estudo realizado pela Universidade de Stirling, na Escócia, em parceria com o Instituto Max Planck e a Universidade de Tübingen, ambos na Alemanha, concluiu que a doença despontou no atual Quirguistão, na Ásia Central. Os cientistas analisaram o material genético de corpos enterrados há séculos em cemitérios do Vale do Chu e comprovaram, graças à tecnologia, a presença da bactéria causadora de tão devastador mal anos antes de sua chegada à Europa. “Nosso trabalho resolve um dos fascinantes capítulos da história e aponta quando e onde o assassino mais notório e infame dos seres humanos começou”, afirmou Philip Slavin, um dos líderes da pesquisa.
O tom um tanto pretensioso é contestado por outros estudiosos, que dizem ser impossível cravar local e data do início da chaga. Há relatos de pandemias desde a Grécia Antiga e suspeitas de que a Praga de Justiniano, que abalou o Império Bizantino entre os anos de 541 e 544, fosse da mesma natureza. De qualquer modo, o DNA dos mortos enterrados às margens do Lago Issyk-Kul traz novas evidências sobre a tenebrosa época. Até então, acreditava-se que a doença chegara à Europa por meio de genoveses após uma batalha em 1346 contra o exército mongol na Crimeia, região atualmente sob o domínio russo.
A peste negra foi causada pela bactéria Yersinia pestis e recebeu esse nome em razão das manchas escuras em partes gangrenadas do corpo dos infectados. Sua forma mais comum é a peste bubônica, transmitida por pulgas de ratos, que provoca inchaço nos nódulos linfáticos, formando bolhas na virilha e na axila. O mal perdurou por séculos, ainda que de maneira menos letal. As famosas máscaras da peste — espécie de capacete bicudo usado por médicos britânicos em razão de uma teoria equivocada de que a enfermidade seria transmitida por meio de odores — surgiram no século XVII, cerca de 300 anos após a publicação de Decamerão. Só em 1894 o suíço Alexandre Yersin descobriu o bacilo da doença, hoje facilmente tratada com a ajuda de antibióticos.
O local de origem não é a única contenda em torno da peste negra. O seu nível de letalidade também vem sendo alvo de um acalorado debate. Uma pesquisa publicada pelo Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, em Jena, na Alemanha, apontou o número de vítimas como superestimado, atacando sobretudo a tese de que metade da Europa teria morrido. O argumento do historiador Adam Izdebski sustenta-se na agricultura. No século XIV, a maioria dos europeus trabalhava no campo. Se 50% deles tivessem desaparecido, a atividade agrícola teria se reduzido severamente, o que não ocorreu.
Revelações científicas iluminam caminhos, mas não podem jamais levar à intolerância. No caso da Covid-19, asiáticos sofreram preconceito e a doença chegou a ser chamada de “vírus chinês”. Na Idade Média, deploráveis perseguições à comunidade judaica compõem uma página a ser deletada. No episódio conhecido como O Massacre de Lisboa, 4 000 judeus foram lançados à fogueira — na visão sombria de seus algozes, eles seriam os responsáveis pela propagação da peste. “Sempre houve a tendência de identificar um malefício com o diferente, o estrangeiro”, explica Gildo Magalhães dos Santos, diretor do Centro de História da Ciência da USP. Bem mais digno do que apontar culpados — eles, ressalte-se, não existem — é usar o conhecimento para impedir a disseminação de novas pragas.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795