No século XVII, o Tribunal da Inquisição convocou Galileu Galilei (1564-1642) para se explicar. Como o astrônomo ousara dizer que a Terra girava em torno do Sol, contrariando a crença religiosa corrente na época? Diante dos inquisidores, ele renegou a teoria revolucionária — e correta, sabemos hoje — para não queimar na fogueira. Reza a lenda, propagada mais de um século depois pelo escritor Giuseppe Baretti, que o cientista teria dito: “Com um coração sincero e uma fé autêntica, abjuro, amaldiçoo e odeio os erros e heresias mencionados”. Ao partir, no entanto, teria acrescentado uma provocação: “Ainda assim, a Terra se move” — “Eppur si muove”, ao pé da letra. Um dos muitos pais da astronomia, Galileu estava certo não só em relação ao planeta que habitamos, mas também ao movimento do universo e do cosmo. Prova disso está na divulgação das primeiras imagens do telescópio espacial James Webb.
Herdeiro do trintão Hubble, o jovem supertelescópio da Nasa e seus parceiros, as agências espaciais europeia (ESA) e canadense (CSA), transportaram o estudo dos corpos celestes para uma nova dimensão. Com instrumentos de última geração, a nova sonda proporciona uma visão muito mais profunda e nítida do espaço, dentro e fora da Via Láctea, onde se encontram o sistema solar e a Terra. Um de seus trunfos é operar no infravermelho, o que possibilitará estudar em detalhes objetos que seus antecessores não conseguiam, como galáxias muito, muito distantes, planetas e estrelas em formação, entre outros. Em outras palavras: com o James Webb, vamos mais longe. “É o equipamento mais moderno que existe, e foi muito aguardado pela comunidade astronômica”, disse a VEJA o professor Rogemar Riffel, da Universidade Federal de Santa Maria e que lidera um projeto que está na fila para fazer uso dessas potentes lentes no futuro.
Um primeiro aperitivo do potencial do James Webb foi revelado no dia 11, em um evento especial na Casa Branca, com as ilustres presenças do presidente americano e da vice, Joe Biden e Kamala Harris, o que dá uma medida da importância que o governo quer imprimir ao projeto. Na ocasião, foi antecipada ao mundo a imagem do aglomerado SMACS 0723, um fascinante mosaico com as mais apartadas galáxias já observadas pelo olho humano. A foto de campo profundo, como está sendo chamada, mostra como elas pareciam há 13 bilhões de anos, pouco depois do big bang, a explosão inicial. “Se você segurar um grão de areia na ponta de um dedo e estender o braço, eis o que está registrado aqui”, resumiu Bill Nelson, administrador da Nasa, presente na divulgação. “É apenas uma fração do universo.”
No dia seguinte, em outro grande evento no Centro de Voo Espacial Goddard, em Maryland, a Nasa revelou o restante das imagens e espectros. Entre elas, as da Nebulosa Carina, uma das maiores e mais brilhantes nebulosas do céu, localizada a 7 600 anos-luz da Terra. Também foram apresentados registros da Nebulosa do Anel Sul, uma nuvem de gás em expansão com quase meio ano-luz de largura em torno de uma estrela moribunda a 2 000 anos-luz, e do Quinteto de Stephan, um grupo compacto de galáxias localizado a 290 milhões de anos-luz, visualizado pela primeira vez em 1877. Os cientistas também vibraram com a divulgação envolvendo o planeta gigante gasoso WASP-96b, que orbita uma estrela a 1 150 anos-luz de distância. Nesse caso, foi revelada apenas uma leitura espectroscópica, mostrando evidências de água, neblina e nuvens que estudos anteriores não detectaram. “As imagens nos permitem estudar como as estrelas, o gás e a poeira estão distribuídos no universo, numa riqueza de detalhes sem precedentes”, explica o professor Riffel. “Já os espectros nos permitem identificar como esses componentes se movem.”
Uma das mais incríveis invenções tecnológicas da humanidade, o supertelescópio espacial de 10 bilhões de dólares foi lançado em dezembro do ano passado na Guiana Francesa. Em janeiro, chegou ao que os astrônomos chamam de segundo ponto da órbita Lagrange ou simplesmente L2, a 1,5 milhão de quilômetros da superfície terrena, uma espécie de varanda para o universo sem obstáculos para atrapalhar. Quase seis meses foram necessários para alinhar os espelhos, resfriar os detectores infravermelhos e calibrar os instrumentos científicos, protegidos por um guarda-sol do tamanho de uma quadra de tênis que os mantém a salvo da radiação solar. Formado por dezoito hexágonos com 1,32 metro de diâmetro, o espelho principal tem aproximadamente 25 metros quadrados de área e pesa 705 quilos. “Ele foi projetado no infravermelho justamente para enxergar mais longe”, diz Roberto Costa, professor do departamento de astronomia da Universidade de São Paulo.
O espetáculo colorido é muito atraente, mas não exatamente verdadeiro. A paleta azulada e marrom que caracteriza o detalhe da fantástica Nebulosa Carina, por exemplo, foi escolhida para fazer brilhar os olhos do observador. É mais um componente do evento midiático organizado pelo governo dos Estados Unidos para, segundo Costa, chamar a atenção dos legisladores e das empresas privadas espaciais para a necessidade de continuar investindo nesse e em outros programas. Segundo o professor, é decisiva a manutenção dessas pesquisas por uma razão primordial: a matéria de que somos feitos (todos os elementos químicos) foi fabricada nas estrelas em formação. “Entender como o universo se forma é fundamental para saber como a vida se forma e se estabelece”, diz ele. “Como diz um amigo, nada mais somos do que cinzas de estrelas.” A fronteira final, que parecia tão longe, está cada vez mais próxima. Eis a beleza da ciência do espaço.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798