Embora a pandemia da Covid-19 tenha reforçado a importância da ciência em geral, o papel da pesquisa e da medicina e suas respectivas capacidades de responder de forma adequada à crise muitas vezes se confundem.
Até o século XVIII, médicos e epidemiologistas aprendiam empiricamente, a partir da observação e do trato dos pacientes. Foi esse mesmo empirismo que levou ao estabelecimento da primeira quarentena oficial, cujos registros remontam à Peste Negra, no século XIV. A célebre máxima latina “Cito, longe fugeas, tarde redeas” – Rápido, fuja para longe e demore para voltar –, dos pais da medicina, Hipócrates e Galeno, sugere que a ideia não é nova.
Nestes primeiros meses de combate ao coronavírus, o que vem salvando vidas – muitas vidas – nos hospitais é o conhecimento acumulado quase intuitivamente pelos médicos
Com o conhecimento que a pesquisa científica produziu desde então, o número de doenças passíveis de cura aumentou de maneira significativa. Exemplos clássicos de contribuições da ciência para o campo da saúde são a vacinação e os antibióticos, entre muitos outros. No entanto, a principal função da pesquisa é descobrir e compreender o mundo. Não cabe a ela a cura, prerrogativa da medicina.
Nestes primeiros meses de combate ao coronavírus, o que vem salvando vidas – muitas vidas – nos hospitais é o conhecimento acumulado quase intuitivamente pelos médicos. O saber que advém da prática é um tesouro difícil de ser aquilatado. A pacientes críticos, por exemplo, às vezes são administradas moléculas cuja ação a ciência ainda não comprovou, mas a testagem empírica e imediata dessa molécula pode acelerar significativamente o processo que levará a uma testagem rigorosa por meio de um ensaio clínico controlado. A prova científica só virá depois. A contribuição da pesquisa será sem dúvida enorme, porém a aplicabilidade de seus resultados ainda deverá trilhar uma longa estrada.
Ainda que suas funções primárias sejam de naturezas diferentes, ciência e medicina estão a serviço da resolução de urgências de formas distintas e complementares e devem correr em paralelo. A resposta mais imediata é a rápida aquisição de experiência clínica pelos profissionais da saúde. Ao mesmo tempo, a ciência está em ação para desenvolver remédios e vacinas, ainda que o processo seja mais lento. No fim, a pesquisa acabará por produzir soluções que serão aplicadas pelos médicos.
É importante ter uma compreensão clara de como a pesquisa e o fato científico são construídos, para que não esperemos deles algo que não podem produzir. Uma linha de pesquisa só se abre quando fazemos uma pergunta. Uma vez definida a questão, desencadeia-se um processo complexo, com múltiplas fases. Para responder à pergunta inicial, é preciso eleger a melhor metodologia, o que pode levar algum tempo, já que envolve a consideração de uma ampla gama de fatores e a definição das amostras a serem analisadas. Se o experimento é levado a cabo com o método equivocado ou amostras inválidas, não chega a lugar nenhum.
O resultado da investigação também pode demorar. Além das análises estatísticas, os dados devem ser interpretados à luz de outros resultados semelhantes, etapa que em geral requer bom conhecimento da literatura científica. Pesquisadores precisam de tempo, é sempre bom ter isso em mente.
O recente estudo observacional sobre o impacto da hidroxicloroquina conduzido às pressas e agora retirado do prestigioso The Lancet, por exemplo, nos mostra dois aspectos fundamentais da pesquisa. O primeiro, absolutamente banal, é que cientistas são seres humanos: desde que a ciência existe, eles cometem erros e os retificam. O segundo é que o tempo do rigor e do cuidar é inabreviável. Não só a origem dos dados era duvidosa; bastava uma análise rápida da sua consistência para entender que as conclusões poderiam estar erradas. Tanto o rigor do método científico quanto o do processo de revisão pelos pares falharam, talvez pressionados pela urgência do momento.
Por todas essas razões, é raro a pesquisa responder a uma emergência. O que os cientistas estão colocando em prática hoje são medidas e ferramentas que eles já tinham, com base naquilo que já sabem fazer: aplicar métodos e técnicas desenvolvidos ao longo de décadas. Nada de novo está sendo criado no momento. Estamos construindo sobre o que já temos.
Poderíamos comparar a pesquisa ao cultivo de árvores frutíferas. Não se pode criar um pomar do zero em um curto período de tempo. Hoje, particularmente, a vantagem é daqueles que possuem os maiores pomares. Tudo o que precisam fazer é se dedicar à colheita. E quanto mais árvores houver, mais rica será a safra. Portanto, a maior aprendizagem desta crise é que o investimento em ciência deve ser permanente e robusto. Está claro que esse investimento é estratégico também em termos de saúde pública e segurança nacional.
*HUGO AGUILANIU, biólogo geneticista francês, é diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, de fomento à pesquisa, no Rio de Janeiro