No início do mês, a estilista britânica Stella McCartney voltou à Semana de Moda de Paris com um desfile intimista no Espace Niemeyer, sede do Partido Comunista Francês. A tônica de sua apresentação foi a sustentabilidade, com 63% das peças desenvolvidas a partir de matérias-primas ecológicas. A estrela do show foram os fungos, presentes tanto nas estampas quanto numa linha de bolsas chamada Mylo. O couro usado nos acessórios foi criado a partir de micélio, como são chamadas as raízes fúngicas. Antes de abrir a passarela, um áudio do biólogo e ativista americano Paul Stamets proferiu: “Na moda, os cogumelos são o futuro”.
Não só na moda, diz outro especialista, o britânico Merlin Sheldrake, cujo livro A Trama da Vida: Como os Fungos Constroem o Mundo (Editora Ubu/Fósforo) acaba de ser lançado no Brasil. Em sua obra, Sheldrake mostra como esses organismos formam comunidades, criam redes de comunicação intrincadas e sobrevivem em ambientes inóspitos, além de se tornarem pilar de sustentação para outros ecossistemas diferentes. “Eles são muito importantes na manutenção de tudo o que vemos e tudo o que entendemos como vida”, disse ele em entrevista a VEJA.
Os fungos estão por toda a parte. Na natureza, ao nosso redor, e também dentro de nosso corpo. Cultivados e modificados, tornam-se essenciais para as indústrias farmacêutica, na produção de antibióticos, antidepressivos e vacinas, e alimentícia, seja como prato, condimento ou na composição de bebidas. Mas não só. Além de suas ancestrais propriedades psicodélicas, descobriu-se que conseguem quebrar poluentes como óleo cru, filtrar metais pesados, resistir à radiação e compor materiais substitutos de plástico e tecidos, o que os torna fundamentais no combate à poluição e ao aquecimento global.
Organismos de metabolismo complexo, os fungos causam doenças e curam. E não é de hoje que sabemos disso. Em 2017, um estudo publicado na revista científica Nature mostrou que a dieta de neandertais encontrados na caverna El Sidrón, na Espanha, era composta de cogumelos, pinhões e musgos coletados provavelmente nas florestas do entorno. Encontrado em 1991, na fronteira entre a Áustria e a Itália, Ötzi, um cadáver de 5 300 anos de idade apelidado pelos cientistas de Homem de Gelo, trazia em sua algibeira fungos-pavio (Fomes fomentarius), usados para acender fogo, e suporte de bétula (Fomitopsis betulina), ingerido provavelmente para aliviar seus problemas dentários.
De lá para cá, foram usados de várias formas e em várias culturas para tratamento de feridas e alívio de dores. Até que, em 1928, Alexander Fleming provocou uma revolução na medicina ao “descobrir” que um bolor produzia a penicilina, primeiro antibiótico moderno, capaz de aniquilar bactérias. Hoje em dia, eles são usados na produção de antivirais, anticancerígenos e psilocibina (princípio ativo dos “cogumelos mágicos”, com aplicações em antidepressivos e ansiolíticos). Além disso, a indústria usa enzimas geradas graças aos fungos, vacinas são produzidas a partir de cepas de leveduras modificadas e o ácido cítrico é um componente sem o qual não se fabricam bebidas gaseificadas. O mercado de fungos comestíveis valia, em 2018, 42,5 bilhões de dólares e pode atingir 62 milhões de dólares em 2023. Uma mina de ouro.
Só o potencial lucrativo não explica o recente aumento do interesse nos fungos. Para Sheldrake, há vários outros fatores. Um deles é o advento do sequenciamento de DNA, que permite saber melhor como funcionam esses organismos. Além disso, a forma como essas criaturas se organizam em rede indica um tipo de inteligência que ainda está sendo decifrada por cientistas. Esses padrões, diz o biólogo britânico, têm ajudado a compreender melhor como nos adaptarmos à vida em um planeta tão castigado como a Terra. “Acho que as pessoas ficaram entusiasmadas com as maneiras como os fungos podem ajudar a resolver alguns dos problemas que criamos para nós mesmos”, disse ele.
De fato, o potencial é imenso. Estima-se que existam no mundo entre 2,2 milhões e 3,8 milhões de espécies de fungo, das quais apenas 6% foram classificadas até hoje. Com o avanço do conhecimento na área, um salto poderá ser dado no sentido de obter ainda mais desses organismos. No passado e no presente, eles já comprovaram seu notável valor. Pelo visto, serão ainda mais úteis no futuro.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762