Quem é o botânico pop italiano que garante: as plantas têm inteligência
Expoente de uma nova área da ciência, a neurobiologia vegetal, Stefano Mancuso faz sucesso com livros de ideias audaciosas sobre a vegetação
Lar de alguns dos maiores tesouros musicais do mundo, o Museu do Violino de Cremona, na Itália, abriu suas portas tempos atrás para um experimento científico. Especialistas montaram um laboratório no local para examinar o magnífico acervo, que inclui violinos e violas criados pelo mais famoso luthier de todos os tempos, Antonio Stradivari (1644-1737). Não faziam parte da turma estudiosos da física ou da engenharia acústica: a investigação foi conduzida por um time de botânicos comandado pelo italiano Stefano Mancuso. Sua meta era mapear as características da madeira utilizada na fabricação daquelas relíquias. A descrição da experiência é um dos deleites compartilhados por Mancuso no livro A Planta do Mundo. Lançado na Europa em meados de 2020 e agora no país, pela editora Ubu, o volume de ensaios celebra concepções inovadoras sobre o mundo vegetal trazidas à luz nos últimos anos — e confirma seu autor como estrela de um ramo emergente da divulgação científica: a botânica pop.
Na Universidade de Florença, Mancuso explora um campo de estudo audacioso: a neurobiologia vegetal, que investiga como as plantas reagem aos estímulos ambientais. Em seus escritos, ele faz pela área o equivalente ao que o médico americano Oliver Sacks (1933-2015) realizou pela neurologia com seus livros sobre o funcionamento do cérebro. Aos 56 anos, o italiano combina erudição e cultura pop para revelar fatos instigantes sobre o mundo verde, além de iluminar seus impactos inesperados sobre nossa existência. “Por milhões de anos, as plantas se adaptaram às situações mais adversas. É inexplicável darmos tão pouca atenção a seu sucesso”, disse Mancuso a VEJA — como um bom jardineiro, ele vestia um jaleco sujo de terra na entrevista pelo Zoom.
As ideias defendidas pelo botânico são tão fascinantes quanto provocativas. Baseado em estudos de sua equipe e de outros especialistas, ele clama por uma guinada radical no “status” das plantas no planeta. “Os vegetais representam 85% da massa dos seres vivos sobre a Terra. Toda nossa concepção sobre a biologia e a evolução, porém, só leva em conta os animais, que respondem por meros 0,3%”, afirma Mancuso (os 14,6% de massa restante são preenchidos por fungos e outras formas orgânicas). Essa mudança de prisma forçaria uma revolução no modo de avaliar o êxito adaptativo das espécies: o principal motor da evolução não seria mais a competição, traço acentuado no mundo animal, mas o cooperativismo e a simbiose — cruciais para as plantas. “Darwin não errou: foram os discípulos dele que deram ênfase desproporcional à competição. O sucesso dos vegetais mostra que a colaboração é a maior arma para a sobrevivência”, analisa.
Outra noção arrojada proposta por Mancuso é a de que as plantas, ao contrário do que a aparência de uma frugal samambaia possa indicar, seriam dotadas de inteligência — uma forma peculiar de inteligência, claro, distante daquilo que conhecemos como raciocínio e consciência. “Um ser inteligente não é só aquele que possui cérebro. É um organismo capaz de resolver problemas e aprender com as situações — e nisso as plantas têm sido craques”, diz. Os botânicos mais tradicionais (a “velha guarda”, no seu entender) ainda torcem o nariz para tais teorias. Mas, no livro, Mancuso elenca descobertas que realmente fazem pensar: sabe-se hoje, por exemplo, que as árvores de uma floresta se conectam por meio de suas raízes para trocar nutrientes e até fazer alertas ambientais, graças a redes de fungos e impulsos bioquímicos.
Os ensaios do próprio Mancuso são a prova de que o encanto dos humanos pelas plantas supera qualquer controvérsia teórica — elas podem ter protagonismo cultural e até político. A Planta do Mundo resgata a hoje quase esquecida história das “árvores da liberdade”, grandes carvalhos que eram retirados das florestas da França para ser plantados em todo o país nos tempos da Revolução de 1789. Em mais um texto delicioso, Mancuso mostra como uma letra medíocre de um cantor chamado Donovan — “resposta britânica” a Bob Dylan nos anos 60 — detonou uma crendice maluca dos hippies sobre supostos efeitos alucinógenos da casca de banana (muitos cérebros de banana caíram nessa).
E há, por fim, a pesquisa sobre os Stradivarius. O segredo dessas joias, garante ele, está na qualidade da matéria-prima. A madeira utilizada nos instrumentos é um tipo de pinheiro, o abeto vermelho. Mas não qualquer um deles: as plantas cresceram por 150 a 200 anos nas encostas secas, frias e de solo pobre de uma floresta nos Alpes. “Em boa medida, a arte do luthier consiste em escolher a árvore certa. Uma escolha incrivelmente difícil, que requer experiência, um olho treinado, a intuição de gênio e grande dose de sorte”, escreve Mancuso. Daqui em diante, é bom encarar aquele antúrio da vovó com outros olhos.
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738