Desde que o cosmonauta soviético Yuri Gagarin se tornou o primeiro ser humano a viajar rumo ao espaço, a bordo da nave Vostok 1, em 12 de abril de 1961, mais de 600 pessoas, entre astronautas profissionais e os novos turistas espaciais, já deixaram a Terra em aventuras dessa natureza. É sempre fascinante imaginar como é a vida fora da órbita terrestre. Há atualmente dez moradores na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Eles se alimentam de comida desidratada por refrigeração e repousam em sacos de dormir amarrados na parede para não flutuarem. É certamente uma experiência única e divertida, mas que pode se tornar árdua e, sobretudo, nada saudável em missões mais longas.
Com o sonho de chegar a Marte no horizonte, uma viagem que duraria anos, as principais agências vêm pesquisando os efeitos da vida sem gravidade no corpo humano. E os resultados preocupam. Um estudo recentemente publicado pela revista Nature Communications Biology, feito com base em amostras de sangue de catorze astronautas da Nasa que voaram entre 1998 e 2001 em missões com duração média de doze dias, mostrou que viajantes espaciais apresentam maior risco de desenvolver uma mutação no DNA de células-tronco chamada hematopoiese clonal. A alteração está associada à predisposição para câncer e doenças cardíacas.
Segundo os autores do trabalho, da Faculdade de Medicina Icahn do Hospital Monte Sinai, em Nova York, o achado não é tão preocupante assim quanto parece, mas acrescenta mais um ponto de alerta visando os próximos passos da corrida espacial do século XXI. O eterno desejo de levar o homem a Marte esbarra em uma série de percalços, a começar pelo tempo necessário à expedição. A viagem de ida mais curta — quando as órbitas da Terra e do planeta vermelho se alinham a uma distância de 55 milhões de quilômetros, um fenômeno que só acontece a cada 26 meses — duraria cerca de sete meses. Um “bate e volta”, portanto, com a tecnologia atual, passaria de dois anos. O falastrão Elon Musk garante que uma nave de sua companhia SpaceX aterrissará por lá até 2028. Chineses, europeus e árabes também têm planos ambiciosos.
A Nasa, contudo, prefere a cautela em relação a prazos (até o retorno à Lua, antes previsto para 2024, foi adiado). Entre as razões, estão as dúvidas sobre o impacto no corpo. Há cinco décadas a agência mantém o Programa de Pesquisa Humana, criado para estudar o corpo dos astronautas tendo como objetivo mantê-los seguros e saudáveis. Em 2019 foram publicados os resultados do Twins Study, uma experiência feita com Scott Kelly, astronauta que passara 340 dias na ISS, e com seu irmão gêmeo idêntico, Mark, que permaneceu em terra firme. Ao voltar para a Terra, Scott apresentou sintomas de envelhecimento, como perda cognitiva, alterações genéticas e vasculares e problemas de resposta imunológica e de acuidade visual, enquanto nada mudou em seu irmão. Ainda que meses depois a maioria das funções do organismo do astronauta tenha retornado à normalidade, os pesquisadores alertaram sobre o fato de que a piora no quadro de Kelly se deu nos meses finais da missão, um indício de que talvez o corpo não consiga suportar uma aventura longa.
A Nasa agrupa os principais riscos no acrônimo Ridge, abreviação em inglês para radiação espacial, isolamento e confinamento, distância da Terra, campos de gravidade e ambientes fechados e hostis. O desafio maior diz respeito à exposição a raios cósmicos, que aumentam o risco de câncer e doenças degenerativas. O engenheiro mineiro Ivair Gontijo, que trabalha na agência desde 2006, participou da elaboração do astromóvel robotizado Curiosity, que estuda o planeta vermelho desde 2012. A VEJA, ele contou que durante a viagem a radiação acumulada foi duas vezes maior do que o que a Nasa recomenda que um astronauta receba a vida toda. “Isso significa que, para levar um homem a Marte, será preciso reforçar muito a proteção metálica. É um problema de engenharia de difícil resolução”, disse. Em março de 2023, os tripulantes da Expedição 68, operação conjunta entre russos e americanos, retornam da ISS após seis meses. Que voltem com saúde e as mais animadoras evidências de que o sonho de explorar os confins do cosmos é possível e que está realmente perto de ser alcançado.
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822