Um planeta sem distorções: físicos propõem a adoção de um novo mapa-múndi
A ideia é um disco aberto que corrigiria os equívocos do modelo usado da mesma forma há mais de quatro séculos
Os primeiros mapas-múndi não foram feitos para sala de aula. Seu objetivo era outro: mercantilistas precisavam de uma orientação bidimensional em papel que pudesse ser levada a qualquer lugar. Mapas já existiam antes das grandes navegações, mas foi o colonialismo no século XVI o que deu impulso à popularização de seu uso. Em 1569, o matemático belga Gerardus Mercator concebeu uma forma de projetar, por meio de meridianos (linhas verticais) e paralelos (linhas horizontais), as massas de terra e água do globo em superfície plana. Mais de 450 anos depois, a Projeção Mercator ainda é utilizada, mas ela apresenta irremediáveis distorções — uma vez que o Polo Norte é esticado e os continentes ao sul ficam menores do que são. Agora, físicos das universidades de Princeton e Drexel, nos Estados Unidos, encontraram um meio de corrigir quase todos os equívocos.
Para entender como o astrofísico Richard Gott, o matemático Robert Vanderbei e o cosmólogo David Goldberg chegaram ao conceito do disco aberto mostrado acima, é necessário fazer uma viagem no tempo. Mercator, como não podia deixar de ser, tinha uma visão eurocêntrica de mundo. Para ele, não era problema, por exemplo, a Austrália ficar menor que a Groenlândia. A Eurásia, continente que importava, aparece maciça, no alto, no meio do desenho, com as Américas e o Japão nas beiradas — retrato do poderio político e militar de uma era. Ao longo de séculos, nações surgiram e evaporaram, mas a Projeção Mercator permaneceu inalterada — até que, em 1921, o cartógrafo alemão Oswald Winkel concebeu uma versão que corrigia três distorções de 1569: distância, direção e dimensão. Recalculando o intervalo entre meridianos e paralelos, Winkel, com a projeção tripla que levou seu nome, aprimorou o conceito de Mercator. Livros didáticos, inclusive brasileiros, e a National Geographic adotariam a proposta.
Os ventos da II Guerra, primeiramente, e as críticas ao novo imperialismo, já nos anos 1970, fizeram brotar novas ideias de mapas. Em 1943, o americano Buckminster Fuller apresentou, na extinta revista Life, um conceito de Terra espraiada, como se o planeta fosse uma mexerica descascada. O mapa, chamado de Dymaxion, podia ser usado como colagem para que as crianças reconstituíssem a esfera em papel. A concepção não vingou, mas, trinta anos depois, o cineasta alemão Arno Peters, defensor do igualitarismo, ressuscitou uma ideia de 1855 do escocês James Gall e lançou a Projeção Gall-Peters, na qual a área do Hemisfério Sul é igualada à do Norte, em troca de alguma distorção. Assim, acabava a ilusão de que a Europa e a América do Norte eram gigantes pairando sobre continentes menores ao sul do Equador.
Gott, físico líder do novo projeto, inspirado nas quatro fontes anteriores, propõe agora um mapa sem vieses, capaz de instigar a curiosidade dos estudantes. Nessa projeção inédita, a Terra é fotografada do alto dos polos. Figurativamente falando, ela é cortada ao meio como uma laranja. Em seguida, os pedaços são esmagados até ficarem achatados, gerando dois discos distintos. Tudo isso, claro, com cálculos matemáticos que, ao menos até hoje, não foram contestados.
O que os críticos da ideia discutem é seu uso prático na escola, já que a Terra não aparece em um quadro único como nas projeções anteriores. Os autores contestam o argumento explicando que os discos podem ser impressos paralelamente ou colados um ao outro, dando ao professor uma ferramenta lúdica de trabalho. Melhor solução do que essa seria ter um globo sempre a mão, o que não é factível. O novo mapa-múndi provavelmente perderá a utilidade quando estudantes puderem acessar imagens tridimensionais da Terra projetadas no ar. Até lá, um disco — igualitário e proporcional — é capaz de fazer o serviço, ao custo de duas impressões, um pedaço de cartolina e um pouco de cola.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728