Um século depois, a Basílica de Ashkelon será enfim restaurada
Construída há 2 000 anos em Israel, ela é um ícone do antigo império
O novo testamento atribui a Herodes, o Grande, um dos atos de tirania mais cruéis já concebidos. Segundo o Evangelho de São Mateus, temendo perder a coroa para o recém-nascido Jesus, ele teria mandado matar, em Belém, todos os meninos com menos de 2 anos de idade. Contestada por historiadores, a versão bíblica se perpetuou porque, no fim da vida, paranoico e sofrendo de doença degenerativa, o rei da Judeia (localizada onde hoje é o sul de Israel) assassinou três de seus filhos, incluindo o primogênito. Mais fácil de comprovar, no entanto, é a faceta empreendedora de Herodes, que, em razão de sua amizade com os romanos, deixou um legado de construções, incluindo o Aqueduto de Cesareia, o Segundo Templo de Jerusalém e Massada, a inexpugnável fortaleza. Agora, a Basílica de Ashkelon, mais uma obra atribuída ao polêmico monarca — também com 2 000 anos de história —, está prestes a recuperar seu esplendor.
Como outras basílicas no mundo greco-romano, a de Ashkelon, balneário do Mediterrâneo a cerca de 70 quilômetros de Jerusalém, funcionava como centro da vida pública, abrigando o conselho municipal, tribunais e câmeras de comércio. Não era um templo religioso, apesar de conter estátuas como as de Nice e Tique, deusas gregas da vitória e da prosperidade. Foi o arqueólogo John Garstang que descobriu as ruínas nos anos 1920, no início do mandato britânico na Palestina. Garstang e sua equipe, no entanto, escavaram apenas parcialmente a edificação e, sabendo que não poderiam garantir a integridade dela, voltaram a cobri-la para protegê-la de saques e intempéries. Quase um século depois, o trabalho recomeçou, primeiro de 2008 a 2012 e, depois, de 2016 a 2018, quando foram descobertos um anfiteatro, colunas e moedas datadas do reinado de Herodes, no fim do século I antes de Cristo.
Hoje, passados séculos das invasões romanas, as autoridades de Israel estão dispostas a restituir a basílica de Herodes à sua forma original, abrindo no local um espaço ecumênico. Como consequência, restaurariam a imagem tão desgastada do rei construtor que entrou para a história como traidor de seu povo e, pior, perpetrador de infanticídio em massa.
Com 110 metros de comprimento e 40 metros de largura, a basílica é mais estreita do que um campo de futebol. Prédios dessa natureza normalmente eram divididos em um hall central e dois corredores laterais. O salão principal era cercado por fileiras de colunas que sustentavam o teto. Relatos do historiador Flávio Josefo, que viveu no século I, mencionam uma construção de Herodes na cidade de Ashkelon com características similares. “Hoje, com base nas novas evidências, conseguimos entender as origens do registro histórico”, diz o comunicado oficial dos arqueólogos da Autoridade de Antiguidades de Israel.
Registros também sugerem que a família de Herodes era natural de Ashkelon, o que explicaria o esmero empregado na construção da basílica, com acabamentos de mármore importado da Ásia Menor. Cerca de 200 itens foram encontrados em várias fases das escavações, de 1920 até os dias de hoje, entre os quais capitéis com a imagem da águia, símbolo do Império Romano, que impunha sua paz na região. Em 363, um terremoto fez a basílica vir abaixo. Abandonada, ela passou por transformações ao longo dos séculos, até ser dilapidada pelos otomanos, que usaram algumas pedras em outras construções. Agora, a histórica basílica renascerá.
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743