Episódio 1: O surrealismo de Apollinaire e Breton
Como os poetas do século passado influenciaram a festa de abertura dos Jogos deste ano
Paris sediará os Jogos Olímpicos pela terceira vez – a primeira foi em 1900. Depois, em 1924. O que esse blog pretende fazer – de hoje até o dia do encerramento, em 11 de agosto – é buscar uma história de 100 anos atrás e costurá-la com um evento ou uma prova de agora. A cada postagem uma piscadela para ontem e outra para hoje. A regra: só valem fatos de 1924, de janeiro a dezembro.
Um acontecimento de 1924…
Existem dias que mudam a história. Em 15 de outubro de 1924, o poeta André Breton lançou o Manifesto Surrealista, como prefácio de um de seus livros. Assim, no trecho fundamental: “(…) automatismo psíquico puro, pelo qual se propõe expressar, verbalmente, por escrito ou por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado de pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética e moral”. O mundo nunca mais seria o mesmo, desmontado, imaginado, qualquer coisa, bêbado de absinto, como se proposto por um robô de inteligência artificial sem censura, sonhador que só ele. E então conhecemos Salvador Dalí, Max Ernst, Miró, Magritte, Hans Arp etc. O surrealismo, que bagunçou as cabeças e os coretos – até Sigmund Freud perdeu o norte ao conhecer a turma que dizia sonhar acordada –, era expressão recentíssima, nem mesmo aparecia nos dicionários. Brotou de um comentário do poeta Guillaume Apollinaire alguns anos antes, ao acompanhar os ensaios de um balé criado por Jean Cocteau, com música de Erik Satie e desenhos de Pablo Picasso – o circense e coloridíssimo Parade. “Surreal”, disse Apollinaire. “Surreal”. Ele morreu três dias antes do armistício da Primeira Guerra Mundial, em novembro de 1918. Não poderia saber, portanto, que estaria na origem de um movimento artístico da pá virada, um dos símbolos dos Loucos Anos 20.
Os franceses guardam de Apollinaire uma ideia diferente, de outra dimensão onírica: ele é o autor do clássico Le Pont Mirabeau: “Escorre sob a ponte o Rio Sena / E em nossos amores / A lembrança me acena”. São versos que estão para a literatura da França como a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, para as letras brasileiras – não se sai da escola, não se presta nenhum exame de admissão em cursos superiores sem que se atravessem as estrofes de um e outro, ainda que as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. O Sena não seria o Sena, como musa dos poetas, não fosse Apollinaire, o pai fundador do surrealismo.
… E um de agora
Que fique decretado como manifesto: muita gente dirá ser SURREAL, em letras maiúsculas, a cerimônia de abertura da Olimpíada, logo mais, na sexta-feira, 26, nas águas do Sena. E só é possível dizer que tem pinta surrealista porque um dia, lá em 1924, Breton bebeu de Apollinaire, o cantor do mais famoso rio do mundo – “escorre sob a ponte o Rio Sena”. O desfile das delegações sairá da altura da Ponte de Austerlitz e vai até o Trocadéro, na frente da Torre Eiffel, em percurso de 6 quilômetros. No caminho, de um lado e do outro, passará pelo Museu d’Orsay, o Museu do Louvre, a Notre-Dame em obras etc., páginas de beleza da civilização ocidental. As provas de triatlo e a maratona aquática também acontecerão no Sena – supostamente limpo. No ano passado, contudo, competições internacionais foram canceladas porque análises bioquímicas revelaram a presença de bactéria E.coli em quantidades muito acima do permitido no arroio. A faraônica solução de emergência: um tanque subterrâneo gigante, com volume equivalente ao de vinte piscinas olímpicas, para captar o transbordamento do sistema de esgoto antigo de Paris. Pelo menos doze vezes ao ano, em média, os túneis de detritos da capital são sobrecarregados e, para evitar que dejetos humanos se espalhem pelas charmosas ruas, libera-se a água residual no Sena. O custo do piscinão de socorro: o equivalente a 473 milhões de reais.
Há uma nota irônica, de evidente coincidência, entre o presente e o passado. Um dos esquemas de segurança montados para proteger os Jogos, e sobretudo o Sena, durante a inauguração, chama-se Parade, tal qual o Parade comentado por Apollinaire, a inspiração do surrealismo. Parade, agora, é o acrônimo, em francês, do programa Protection Déployable Modulaire Anti-Drones. É um sistema militar de proteção contra drones de todos os tamanhos, como se fosse um escudo virtual. E nunca, como em Paris de 2024, haverá uma festa tão maciçamente protegida – e tão criticada, dado os gastos exponenciais com a proteção contra atentados. Louva-se o aspecto democrático da festa à margem do rio, mas é balela. A choldra, a ralé, o povo (a mais bonita criação da Revolução Francesa, de 1789), esses muito pouco ou quase nada conseguirão ver, a não ser pela televisão ou em sonhos. Contudo, um lote de 10.000 privilegiados estará bem posicionado, tendo desembolsado ingressos cujos valores vão de 90 euros a surreais – surreais – 2.700 euros.
No episódio de sábado, 27 de julho: a nudez em forma de violino e o Tarzan do cinema nas piscinas parisienses