Episódio 3: Os socos de Ernest Hemingway
A engenharia reversa é ruim - mas o que pensaria o escritor que calçava luvas se acompanhasse o desempenho espetacular de boxeadoras como Beatriz Ferreira?
Um acontecimento de 1924…
O personagem de hoje é Ernest Hemingway, e muito mais não precisa ser dito a respeito dele. Mas cabe uma paradinha para apresentar o nascimento da expressão “geração perdida”, da qual o autor de Paris É uma Festa é porta-bandeira. Quem a proferiu foi a escritora americana Gertrude Stein, em cujo apartamento da Rue de Fleurus, número 27, se reunia a fina nata das artes e das letras. Ela a ouvira do dono de uma mecânica de automóveis que ralhava com um funcionário desatento, incapaz de apertar parafusos. Um dia, magoada com Hemingway, Gertrude disparou: “É isso que você é… Todos vocês jovens que fizeram a guerra. Vocês são uma geração perdida”. A boutade se perderia não tivesse o próprio Hemingway a usado na epígrafe da folha de rosto de O Sol Também se Levanta, de 1926.
E o que fazia Hemingway no ano olímpico de 1924? Casado com Elizabeth Hadley Richardson, com quem tinha uma bebê de menos de 1 ano, preparava seu primeiro livro de contos. Era ainda desconhecido, perdido. Ele tinha 25 anos. Ela, 33. Circulava – flanava, como se dizia – pelas ruas ao redor do apartamento modesto na Rue du Cardinal Lemoine, 74, entre o Jardin des Plantes e o Jardin de Luxembourg, pertinho do Panthéon, não muito longe da Sorbonne, no coração do Quartier Latin. Procurava uns tragos e adversários para o boxe. Era assim todo dia em que o sol levantava. Fazia “sombra”, em frente aos cafés, “com seus lábios se movendo, como se tivesse diante de um oponente imaginário”, anotou o editor Robert McAlmon. Um dia conheceu o poeta americano Ezra Pound e fizeram um acordo tácito. Pound, quatro anos mais velho, ofereceria a Hemingway alguns conselhos para bem escrever – “Hem” o apresentaria aos truques do pugilismo. De Paris É uma Festa, clássico relato daquele tempo, aqui na tradução de Ênio Silveira: “Ezra quis um dia que eu o ensinasse a lutar boxe. Foi quando estávamos treinando em seu estúdio, ao fim de uma tarde, que vi Wyndham Lewis (pintor, romancista e ensaísta inglês) pela primeira vez. Ezra estava ainda muito verde na arte de boxear e eu me senti envergonhado por ele, a exibir-se assim na presença de um conhecido. Esforcei-me para que se mostrasse tão eficiente quanto possível, mas sem muito resultado. Ezra tinha uma certa prática de esgrima, e eu tentava treiná-lo no sentido de trabalhar com a mão esquerda e de mover o pé esquerdo para a frente, colocando o direito, logo a seguir, numa posição paralela a ele. Eram movimentos básicos, elementares, mas jamais consegui ensiná-lo a desfechar um gancho de esquerda e a encolher a direita”.
Em dezembro de 1924, Hemingway perdeu seu companheiro de luvas e livros. Pound deixou Paris com a mulher, Dorothy Shakespear, e foi para Ravallo, na Itália – ali se encantou com o estúpido fascismo de Benito Mussolini e virou fervoroso adorador das absurdas ideias do Il Duce. Voltaria para os Estados Unidos apenas em 1945, onde chegou a ser preso acusado de traição por divulgar propaganda fascista nas rádios americanas durante a Segunda Guerra Mundial. Hemingway seguiu boxeando em Paris. “Minha escrita não é nada, meu boxe é tudo”, escreveu. O pugilismo – além das touradas – era um modo de mostrar como ele enxergava o mundo masculino, em oposição ao feminino, diante da máquina de escrever e dentro de um ringue. Para ele, ícone longevo da virilidade, o machão por excelência, desferir socos era coisa de homens, de homens da geração perdida.
… e um de agora
Já que é preciso começar de algum lugar esse segundo bloco da postagem de hoje, que tal imaginar Hemingway nas tendas provisórias vizinhas às quadras de Roland Garros, transformadas em ringue de boxe, ou na Arena Paris Norte, neste verão europeu de 2024? Ele não gostaria nadinha do que viria – indício de como os 100 anos passados fizeram bem para a humanidade. Hemingway, sabe para quem os sinos dobram? Para as mulheres. A boxeadora brasileira Bia Ferreira – Beatriz Iasmin Soares Ferreira –, 31 anos, da categoria peso leve, de até 60 quilos, é favorita ao ouro. Medalhista de prata em Tóquio, há três anos, ela é bicampeã mundial em sua categoria.
Treinada pelo pai, Raimundo Ferreira, o “Sergipe”, bicampeão brasileiro e baiano – terra de pugilistas –, ela diz nunca ter sofrido preconceito na carreira. “Não dou confiança para ninguém vir falar qualquer coisa desse tipo para mim”, afirma como quem solta um direto. “Felizmente estou livre disso aí.” O destaque de Bia em um esporte quase sempre atrelado ao mundo masculino (elas disputam o pódio olímpico apenas desde 2012) ilumina uma faceta dos Jogos de 2024. Haverá contingente igual de mulheres e homens na competição parisiense – em 1924, pasmem, foram 3.089 atletas e apenas 135 mulheres. O Brasil levou 12 esportistas, nenhuma mulher. Em 2024, há mais brasileiras do que brasileiros. E lá vai o barão Pierre de Coubertin revirar-se no túmulo, incomodado. Basta lembrar o que ele disse logo antes dos Jogos de 1924: “Uma Olimpíada com mulheres seria impraticável, desinteressante, inestética e imprópria”.
No episódio de terça-feira, dia 30: a olimpíada das artes e o primeiro grande time de futebol da história