Gervais, de Humanidade (Netflix): a ameaça do politicamente correto da web
E como Facebook, Twitter, YouTube, Instagram colocaram o humor de qualidade e as melhores expressões artísticas em risco de extinção
“O mundo está ficando pior. Culpo as redes sociais pelo começo do fim. Foi com Twitter e Facebook que se cultivou e estabeleceu uma noção ridícula de que é mais importante ser popular do que estar certo.”
A frase acima resume bem do que se trata o novo show de piadas, no estilo stand-up comedy, do inglês Ricky Gervais. Não conhece o nome? Talvez lembre, então, da criação mais famosa do comediante: The Office. Ainda não? Gervais também é apresentador do Globo de Ouro – prêmio que também já ganhou algumas vezes. Ainda não? Dê um Google.
O espetáculo Humanidade, que Gervais lançou há pouco na Netflix, propõe se debruçar, entre uma piadinha e outra, sobre o estado atual da civilização. A da civilização ultraconectada, das redes sociais. É inegável os avanços proporcionados pelas novas tecnologias, que aproximaram pessoas ao redor do planeta, tornaram o mundo mais rápido etc. e tal. Tudo aquilo que já se fala por aí – e que as empresas da era digital divulgam escandalosamente por todos os lados. Mas Gervais não se propõe a falar dos benefícios. Ele se atém às chatices que vieram com a turma de Twitter, Instagram, YouTube, Facebook.
Em especial, mostra como o povo da internet está encaretando as conversas, exagerando no politicamente correto e, com isso, de forma voluntária ou involuntária, transformando o ambiente online num cenário onde se impõe a regra assim definida por ele: “Não importam argumentos. Minha opinião vale mais do que seu fato”.
Isso não só deixa as redes sociais e, como um todo, a internet e, pelo amálgama atual das coisas, o mundo por completo (falo aqui do tangível), uma chatice. A partir do momento em que tudo com o qual não se concorda é condenado de imediato; que o outro é visto necessariamente como amigo ou inimigo, sempre; que moralismos e bom-mocismos se sobrepõem ao humor e à arte; que… enfim, todos frequentamos essas redes e sabemos do que se trata. A partir do momento em que aconteceu essa loucura atual, algumas consequências perigosas vieram junto.
A definição de liberdade de expressão não corresponde bem ao que o povo da internet acha que é. O que o povo da internet acha? Que se trata de poder falar o que quiser; mas que o outro não pode dizer algo que nos ofenda. Na real, liberdade de expressão é outra coisa.
É justamente a defesa de que todos podemos falar, sem culminar em violência ou crimes. Quem realmente apoia essa máxima teria de, para provar que concorda com isso, escudar inclusive alguém de opiniões contrárias, mesmo que ofensivas pela ótica do julgamento próprio, para que esse ser oposto possa disseminar suas ideias (até quando loucas e sem pé nem cabeça) à vontade. Pegou?
Gervais se apoia em um ótimo exemplo pessoal para tratar do assunto. Ele é um provocador. Por isso, nesse clima de politicamente correto online, é xingado, atacado, a todo momento.
Certa vez, um hater tuitou que o comediante inglês iria sofrer no Inferno, onde seria estuprado pelo capeta. Piada vai, piada vem (e as que Gervais faz com o caso são de gargalhar), acabou que os fãs do célebre inglês começaram a pedir pela condenação de tal hater. Ao que Gervais, real paladino da liberdade, pegou-se defendendo o atacante; defendendo, veja bem, o direito do outro de achar que ele próprio deveria ir parar no Inferno e ser estuprado por Lúcifer. Isso, sim, é realmente acreditar na liberdade de expressão.
Mas não é isso que o povo da internet quer. O ser humano médio das redes sociais – que, convenhamos, não é lá muito inteligente ou culto – prefere é gritar, ditar máximas, e condenar ao Inferno quem não concorda com ele. No Brasil, as imbecilidades que giram em torno dos fanáticos lulistas ou dos fanáticos bolsonaristas é prova máxima de tal conclusão. “O grande inimigo é a burrice”, diria Gervais.
Teve outra vez em que ele foi alvo da “burrice” e que, aqui, servirá para ilustrar como o ser humano médio do Facebook ou do Twitter ambiciona ser um pequeno ditador em sua pequena (no caso de alguns, um pouco maior, e mais danosa) bolha. O começo da história: Gervais fez uma anedota que incluía tirar sarro de quem tem alergia a amendoim; o que causou revolta em associações de mães com filhos alérgicos. Depois de muito blá blá blá, uma dessas preocupadas mães tuitou “Não se deve fazer piada com alergia a amendoim”.
Sim, o intuito era proibir. A ideia era impor limites, inclusive, às risadas alheias. Hoje em dia, não se pode mais rir do que se quer rir.
Ao que Gervais, espertamente, respondeu: “Faço piadas com Aids, com câncer, fome e Holocausto. E você diz para não fazer piada com alergia alimentar?”. Aí ela retrucou (acredite…): “Mas o Holocausto não matou crianças”. E Gervais: “Bem… matou, não é?”.
A história serve para contextualizar a situação em que estamos. O povo da internet é intolerante, burro, mal informado e… chato paca. Uma chatice, contudo, que se torna uma real ameaça às nossas liberdades. Todas elas. Incluindo, a de expressão. E que, numa ironia, um dia pode acabar por abafar até as causas sociais mais nobres.
Afinal, alguém pode não concordar com uma delas e logo pedir para que, por isso, a mesma seja censurada. O politicamente correto em excesso e apenas levando em conta os próprios vieses pode destruir as bandeiras do… politicamente correto.
Mas assim é a humanidade, né? Intolerante, burra, mal informada e chata paca. Porém, a maioria que se encaixa nessas categorias antes era simplesmente desprezada. Com o megafone das redes sociais, esses começaram a achar que valem mais do que valem. O risco é um dia eles tomarem o poder. Na internet, parece que já conseguiram. Em alguns países, também. Noutros, como no Brasil, estão muito próximos do trono.
Frente a essa Guernica digital, Gervais parece ter perdido a esperança. Deve ser por efeito contínuo da idade mais avançada. Eu, um pouco mais jovem, ainda resguardo minhas expectativas positivas em relação ao futuro. Espero que essa onda de ataques a tudo e a todos cesse no momento em que se der menor crédito ao que é dito por qualquer ignorante na internet.
Assim, poderemos continuar a viver num divertido mundo de liberdades individuais. Um no qual uma piada boa sobre algo ruim não seja vista como ruim só por ter abordado algo ruim; pelo contrário, muitas vezes tirar sarro é uma das melhores formas de crítica. Contudo, infelizmente, o ser humano médio da internet não é muito hábil em interpretar piadas… nem ironias… nem textos… nem arte… nem filmes que não sejam algo como “herói X salva o mundo do vilão Y”… e reclama de qualquer textão.
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