Demandas globais por desmatamento zero e a agropecuária brasileira
Seis grandes redes de supermercados europeias anunciaram hoje restrições à importação de carne bovina do Brasil por conta do risco de desmatamento importado
Vários países vêm adotando medidas para diminuir as suas contribuições indiretas ao desmatamento por meio do controle ou proibição de importações de produtos agropecuários. Recentemente a Comissão Europeia apresentou proposta legislativa para instalar um sistema de “diligência devida” (due diligence) que visa banir as suas importações de produtos provindos direta ou indiretamente de áreas desmatadas. Além de impor a rastreabilidade total das importações, a proposta exige conformidade com a legislação nacional dos países produtores e que os produtos não provenham de áreas desmatadas após 31/12/2020, mesmo que cumprindo a lei nacional. Ao mesmo tempo, seis grandes redes de supermercados europeias anunciaram hoje restrições totais ou parciais à compra de carne bovina brasileira por conta do risco de “desmatamento importado” na sua cadeia de suprimento.
Qual será o impacto potencial desta proposta sobre o Brasil? Ela vai definir as condições de acesso ao segundo maior destino das exportações do agronegócio brasileiro?
Um antigo mito Nórdico relata a história do Rei Viking Canuto que, mesmo dominando boa parte da Escandinávia e da Inglaterra, queria mostrar aos seus súditos que até o seu poder tinha limites. Colocando o seu trono à beira do mar, ordenou que a maré que avançava no seu sentido parasse. As forças da natureza fizeram pouco caso da sua ordem. Quando o mar molhou as suas pernas, o Rei exclamou: “observem a futilidade do mando dos monarcas frente às leis eternas que comandam o céu, as terras e os mares”. Essa lenda nos chama a atenção para os movimentos naturais que, goste-se ou não, exigem o respeito e a adaptação da sociedade humana: quem insistir em enfrentar a maré em pé, logo se encontrará no fundo do mar.
As mudanças climáticas tornaram-se um destes movimentos profundos que ditam o rumo da civilização. Os esforços de fazer frente a este desafio vieram para ficar, e irão se intensificar no futuro. Os países que não se engajarem em mitigar as suas emissões sofrerão pressão externa para fazê-lo.
No caso do Brasil, a maior fonte das contribuições para as mudanças climáticas é, inegavelmente, o desmatamento ilegal. Nos últimos anos, os esforços internacionais para frear e, eventualmente, reverter o desmatamento têm ganhado fôlego. No âmbito da recente COP26, um grupo de países representando 85% das florestas do mundo se comprometeu em eliminar o desmatamento ilegal até 2030, entre eles o Brasil.
Alguns segmentos do setor acusaram a proposta da União Européia de passar por cima da legislação brasileira. Porém, na sua presente formulação, o impacto principal nas exportações brasileiras não seria por meio de novas regulações, mas sim por meio da demanda de conformidade com o Código Florestal brasileiro. Se a versão final dessa proposta tomar a inconformidade ambiental da propriedade rural como parâmetro central, muitos exportadores seriam banidos do mercado europeu. Um estudo recente publicado na prestigiosa revista Science indica um risco de desmatamento ilegal associado a propriedades que representam 20% das exportações de soja e 17% das exportações de carne para a EU.
Propostas semelhantes estão tramitando em outros países, como o Reino Unido e os EUA. Embora a China ainda não tenha apresentado significativas demandas ambientais, há sinalizações de que poderia adotá-las num futuro não distante. As demandas por produtos com desmatamento zero refletem um movimento no mercado global. Atores centrais nas cadeias agroalimentares – tradings, agroindústrias, grandes varejistas – se comprometeram a excluir produtos associados ao desmatamento após 2020. Embora poucos já atingiram essa meta, existem pressões para que cumpram este objetivo ao longo dos próximos anos. Para além dos riscos de acesso ao mercado e ao crédito internacional, vale a pena não esquecer o próprio valor inerente de um ecosistema funcional. As secas prolongadas e as geadas incomuns são sinais dos limites naturais que ameaçam a própria base ecológica do agronegócio brasileiro. Estimativas indicam que 28% da produção agrícola em regiões de fronteira está negativamente afetada pela instabilidade climática, número que crescerá para 51% em 2030 e 74% em 2060.
Pressionado tanto pelo acesso ao mercado internacional e pelo avanço das mudanças climáticas, a questão que se coloca é: o agro brasileiro vai enfrentar um futuro de grandes restrições comerciais nessa matéria?
A resposta é “não necessariamente”. Diferentemente de setores energéticos baseados nos combustíveis fósseis, a agricultura brasileira possui todas as condições para fazer uma transição na direção de modelos de produção de baixo carbono, e ao mesmo tempo aumentar a sua produção.
Paradoxalmente, poucos infratores prejudicam o setor como um todo; somente 2% das propriedades agrícolas respondem por 62% de todo a conversão ilegal. O Brasil já demonstrou que sabe coibir o desmatamento ilegal, tendo reduzido-o em mais de 80% entre 2004 e 2012 na Amazônia Legal. As ferramentas estão à disposição, mas o que falta é vontade política. Há uma necessidade premente de parar de perdoar transgressões ambientais do passado, o que somente incentiva futuras infrações. Isto requer uma mudança no cálculo estratégico do setor: o fazendeiro que atua no triângulo Mineiro, com a sua propriedade em plena conformidade ambiental, não tem nenhum interesse na continuidade da invasão ilegal de terras no Pará.
Confrontar o desmatamento ilegal pode reduzir significativamente as emissões brasileiras. Em relação ao desmatamento legal, – que é bem menor, mas que ainda gera emissões – o pagamento por serviços ambientais, a geração de créditos de carbono, e a introdução de mecanismos de compensação constituem ferramentas importantes para convencer o produtor a deixar a vegetação nativa intacta além das suas obrigações legais. Na COP26 foram fechadas as regras para o estabelecimento do um mercado global de carbono, que pode criar incentivos para reflorestamento.
Um olhar sobre os desafios estratégicos do agronegócio brasileiro mostra que o seu interesse de longo prazo é a convergência com a pauta ambiental e climática, que será parâmetro fundamental para definir o seu sucesso. Portanto, é preciso não somente olhar para as metas de 2028 e 2030, mas definir linhas de atuação para 2050 ou 2070. Dado o peso do agronegócio na economia brasileira, não interessa somente entrar no jogo ambiental: interessa ao Brasil liderar esta pauta por meio da apresentação de resultados concretos. Hoje em dia, o país está longe desta liderança, mas possui potencialidades naturais e tecnológicas para mudar o jogo.
Assumir a liderança na pauta climática implica ultrapassar a meta de desmatamento net-zero o mais rápido possível. Isto quer dizer que o país chegaria a um ponto no qual as taxas de reflorestamento superariam as taxas de desmatamento anuais. Com aproximadamente 100 milhões de hectares de pastagens com algum grau de degradação, a intensificação da produção deixa amplo espaço para aumentar a produção de alimentos, ao mesmo tempo em que recompomos as florestas. Tornar-se um país que planta mais florestas do que derruba será a melhor estratégia para defender a reputação internacional do Brasil como agroexportador.
Este processo de modernização agroambiental depende necessariamente de uma mudança do paradigma de expansão horizontal, baseada na conversão de áreas de vegetação nativa pela expansão vertical, a partir do aumento da produtividade, de forma sustentável. Os avanços brasileiros na integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), o plantio direto, o controle biológico de pragas e a fixação biológica de nitrogênio são ativos com alto potencial de sustentabilidade e passíveis de reconhecimento e admiração internacional.
A maré das demandas ambientais, provinda de governos, atores privados ou das próprias forças da natureza, não vai ceder. O Brasil não somente tem salva-vidas, como de fato possui meios importantes para navegar nas águas incertas do futuro. Chegar neste ponto depende da ambição e da coragem para fazer as escolhas apontadas pela ciência e por uma visão que se estenda para além do próximo ano fiscal ou dos ciclos eleitorais.
Niels Søndergaard é doutor em Relações Internacionais e Pesquisador Sênior do Insper Agro Global.