As transições na política costumam ser contraditórias, rupturas com boa dose de continuidade. E, como as referências materiais precisam ser buscadas no passado, mesmo as utopias têm o hábito de deitar raízes na experiência vivida. Daí as rupturas virem habitualmente revestidas da idealização do que ficou para trás.
Não deixa de ser curioso o presidente Jair Messias Bolsonaro estar com um problema semelhante ao de João Baptista Figueiredo, o último presidente do ciclo militar. Vai se criando no país um estado psicossocial semelhante ao que desembocou na Nova República. Um sintoma é a “tancredização” de Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas é uma tancredização de novo tipo, por um detalhe. A exemplo de Tancredo Neves, Lula vai fagocitando quem pode e incorporando à composição, deixando para lá o que foi feito no verão passado. A exceção, até agora, é o núcleo operacional da Lava-Jato, mas os políticos que lhe deram sustentação e nela surfaram vão sendo todos “anistiados” pelo petismo. Desde que apoiem Lula.
Há, porém, uma originalidade no método lulista em 2022. Ao contrário do que propõe a sabedoria convencional, o ex-presidente evita, por enquanto, inclinar-se programaticamente ao centro. Uma hipótese é o petista querer atrasar esse movimento o máximo possível, para reduzir o alcance das inevitáveis concessões. Mas há outra explicação, pragmática: Lula não modera o discurso e o PT não lipoaspira seu programa porque, simplesmente, não precisam fazer isso.
“O centro tem sido um balaio de caranguejos. Quando alguém ameaça subir, os demais puxam para baixo”
Ciro Gomes anda empacado na sua fatia de mercado tradicional, já exibida em três eleições presidenciais. O pedetista ameaça ser mais uma vítima da fantasia de haver um extenso contingente de eleitores dispostos a rejeitar simultaneamente Bolsonaro e Lula. E a outra fração da terceira via, a centro-direita, parece acreditar que demolições são o método mais eficaz para construir um edifício. O centro tem sido um balaio de caranguejos. Quando alguém ameaça subir, os demais puxam para baixo.
Diante da anemia das alternativas para fazer frente aos atuais favoritos, é da natureza da política que a pressão informacional antibolsonarista acabe anabolizando, por gravidade, a musculatura político-eleitoral de Lula. Ele aparece como o produto disponível para quem deseja impedir um segundo mandato do atual ocupante da cadeira principal no terceiro andar do Planalto.
O PT está aproveitando a onda para tentar liquidar a fatura no primeiro turno. Ou ficar tão perto de conseguir isso, fazendo com que o segundo turno seja quase uma formalidade. Se bem que segundos turnos sempre ameaçam com surpresas.
Esse é o quadro, à espera de algum fato novo capaz de romper a inércia. Descartado o Sobrenatural de Almeida, romper a inércia depende de o governo conseguir, em quatro meses, reverter num grau suficiente o pessimismo com a economia, especialmente na percepção do povão, e principalmente no tema da inflação.
Esse é coração da atual corrida pelo poder. Ou Bolsonaro decifra a esfinge ou vai depender do imprevisível.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794