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Augusto Nunes

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‘Na pelada, uma biografia de Chico’, de Márvio dos Anjos

Publicado no Blog Márvio dos Anjos MÁRVIO DOS ANJOS Já joguei bola com Chico Buarque, no campo do Politheama, no Recreio, Zona Oeste do Rio. Eu tinha 20 e poucos anos, era voluntarioso nos carrinhos e considerado um perigo aos sessentões em campo. Jogava às segundas e quintas, por quase dois anos, creio que entre […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 05h09 - Publicado em 18 out 2013, 13h07

Publicado no Blog Márvio dos Anjos

MÁRVIO DOS ANJOS

Já joguei bola com Chico Buarque, no campo do Politheama, no Recreio, Zona Oeste do Rio. Eu tinha 20 e poucos anos, era voluntarioso nos carrinhos e considerado um perigo aos sessentões em campo. Jogava às segundas e quintas, por quase dois anos, creio que entre 1998 e 2000.

Logo na entrada havia uma proibição expressa contra a entrada de jornalistas e chatos em geral. Naquele campo, propriedade privada, fazia sentido, e eu ainda não tinha me formado na UFRJ.

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Às vezes, eu me dava conta de que estava jogando ao lado daquele Chico, aquele poeta de tantas canções vigorosas, ídolo de meus pais, formador da identidade de tantas mulheres, burlador da ditadura, exilado político, referência minha para letras de música. “Caralho, é o Chico”, a mente me gritava. E tudo virava um privilégio, o qual pude desfrutar por ao menos dois anos.

Lembro-me de ter atuado no time dele poucas vezes, levado pelo guitarrista Fred Nascimento, de carona com Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana. Não fiz sucesso como goleiro; sempre fui espalhafatoso e fanfarrão demais para o tipo de goleiro que o brasileiro ama: discreto, sacerdotal, mártir. Acabei barrado, e me tornei adversário.

O Politheama era uma panela típica, clássica de quem é o dono da pelada: Chico, Carlinhos Vergueiro e Vinicius França formavam a espinha dorsal, que se reforçava da melhor juventude disponível (um pouco como a carreira musical de Caetano, o que não reprovo: reciclar-se é uma arte) e obrigatoriamente jogava as duas primeiras partidas. Terminadas, eles saíam ao vestiário, felizes com o resultado, e tomavam suas duchas e perfumados, deixavam o campo. Chico costumava conversar pouco com novatos: sua timidez e seu pouco espaço a intimidades são verdadeiros.

(Não tenho muito a acrescentar às mulheres e aos gays sobre o que vi no vestiário, lamento, não era meu foco. Posso apenas confirmar que Antônio Pitanga é sempre uma presença perceptível)

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E sim, os Politheamas saíam sempre felizes. Porque o Politheama é árbitro inconteste em seu próprio gramado. Todas as marcações são a favor deles, a fim de manter a lendária invencibilidade. Meu Deus, COMO roubam.

A verdade é que, mesmo sabendo disso tudo, havia um desafio que me levava a continuar contra Chico e seus amigos. Nas poucas vezes em que joguei contra o Politheama e ganhei, comemorei como um louco. Porque sabia que eram vitórias absolutas, indiscutíveis. Foram vivências como essa que me fizeram crer que time bom ganha até de juiz. E olhe que os times da Série A do Brasileiro não chegam nem perto de enfrentar por um ano inteiro o nível da arbitragem que rolava no Recreio.

Escrevo sobre Chico Buarque porque a polêmica das biografias precisa ser situada também no espírito esportivo que favorece o espírito democrático. E porque sempre que tocarmos neste assunto falaremos da proibição estúpida que limitou por anos o acesso ao magnífico “Estrela Solitária”, relato de Ruy Castro sobre Garrincha.

Hoje, Chico Buarque defende no Globo o direito de Roberto Carlos e de si mesmo à privacidade, afirmando até que foi justa a indenização às filhas de Garrincha, por conta dos danos que “Estrela Solitária” lhes infligiu no além-túmulo. O livro conta o drama do ponta botafoguense contra o alcoolismo, seus filhos no exterior e detalha sua portentosa centimetragem íntima, o que foi considerado chulo pelas filhas e pela maioria da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 2006, que ganharam o processo contra a editora Companhia das Letras: indenizações de 100 salários mínimos para cada uma delas, pelos danos morais, com juros; pelos danos materiais, mais 5% sobre o total das vendas do livro, com juros. Fico pensando se tais danos – se é que existem, eu não os vejo – são comparáveis com o lugar literário e memorial que Garrincha conquistou após a épica pesquisa de Ruy Castro – que até filme virou, ainda que malogrado. Seria mais justo com Garrincha que, até a morte de cada uma de suas filhas, sua realidade fosse legada ao esquecimento e virasse apenas um personagem de mitologias – aquelas que Ruy Castro desmente com riqueza de detalhes e que a tradição oral da crônica esportiva insistiu em pintar?

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Em suma, o país perde o direito à análise e à memória imediatas por caprichos de filhos, gente que, muitas das vezes, divide apenas DNA e olhe lá. Para mim, é o pior lado da nossa atual legislação das biografias. E é isto que Chico considera justo.

Mas Chico Buarque vai além em seu artigo. Ele afirma que, ao contrário do que está na biografia de Roberto Carlos, não foi entrevistado por Paulo César de Araújo* para a biografia censurada de Roberto Carlos, que levou 15 anos para ser escrita. E declara que não deu a declaração, publicada no livro Eu Não Sou Cachorro Não que Paulo César encontrou em edição de 1971 no extinto jornal Última Hora – Chico supostamente criticaria posturas de Caetano e Gil que manchavam a imagem do país no exterior durante a ditadura. São acusações sérias. Também repudio as censuras que sofreu, como as que atribui à Globo.

Li Eu Não Sou Cachorro Não. É uma obra-prima sobre como o regime militar perseguiu a música popular brega e traz uma enorme meditação sobre certos preconceitos da crítica musical brasileira, que privilegiava os músicos da MPB “universitária”, como Chico, Caetano e Gil, e se esquecia de ver que os cantores do Brasil profundo, como Wando, Amado Batista e Odair José eram tão perseguidos quanto – recomendo esse livro a qualquer um. Como qualquer trabalho humano, pode ter erros. Como qualquer trabalho jornalístico – e as biografias são jornalismo –, pode ter gralhas a serem corrigidas e desculpadas em edições seguintes. Se Paulo César incorreu em erro que mancha a reputação de Chico, que o livro seja corrigido e/ou o compositor indenizado. O livro sobreviveria tranquilamente sem a menção a Chico Buarque, sem prejuízo da importância. Mas nada justificaria que fosse proibido ao grande público.

E claro, sou da opinião que a pelada revela o homem. Tudo que alguém é capaz de fazer por vontade de vencer numa partida amadora é reveladora do caráter, das posturas, do espírito nobre sobre o qual Coubertin estabeleceu as fundações dos Jogos Olímpicos. Primeiro porque o esporte é só uma brincadeira tornada séria – ficou importante porque somos gigolôs da metafísica: queremos ver narrativa e transcendência em tudo, porque nossas vidas precisam desesperada e diariamente de um sentido, e o futebol guarda muito espaço para o imprevisível que nos favorece, mesmo quando somos inferiores tecnicamente. Metaforicamente, é um oásis.

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A rigor, porém, um partida é uma partida é uma partida.

E a vitória tem matizes. Uma vitória limpa sempre me pareceu infinitamente mais saborosa do que aquele papo de “gostoso é ganhar de pênalti roubado, aos 47 do segundo tempo”. Uma vez li isso numa crônica e, garoto influenciável ainda, repeti para o meu pai, como se verdade absoluta fosse. Ele me respondeu: “Isso é uma bobagem. Tem que ser de goleada, dando show de bola”. E isso ecoa em mim até hoje: prefiro ganhar sem trapaças ou autoritarismos.

Chico Buarque é hoje um dos donos da bola do campo cultural brasileiro. Chegou a esse lugar com muito talento, suor e estratégia. Raramente dá entrevistas – os poucos que têm acesso a si são tidos e havidos como privilegiados, e cultivam esse lugar. Na MPB, tem o poder da bênção, e é um dos elogios mais disputados por jovens compositores e intérpretes. Aparentemente, na literatura, também chegou à indiscutibilidade. Aparentemente, não vê problema em pedir faltas da mesma maneira que pede no Politheama.

O problema é que o Politheama é propriedade privada. Tudo certo, embora pouco esportivo. Não há por que liberar entrada de jornalistas. Dou total razão à plaquinha que nos proíbe, se ainda estiver lá. Prometo nem tentar ficar na de fora.

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Mas o que está em jogo na questão das biografias é uma regra que valha para todos e que estimule o cultivo de memórias e análises sobre o que o Brasil foi e sentiu. A busca por uma lei que permita o trabalho jornalístico honesto e a pesquisa histórica séria sobre figuras públicas que construíram o país. Artistas, políticos, esportistas, combatentes, empresários, o que for. Ao defender que haja diferenciações entre artistas e políticos, Chico comprova a frase do escritor Albert Camus:

“Um escravo começa clamando por Justiça e termina em busca de uma coroa”.

O ônus da vida pública existe, sim. É possível que fatos da intimidade sejam revelados – nas democracias ocidentais, essa foi a opção. E, em democracia, não existe censura. Isso é indiscutível e qualquer regra que signifique autorização prévia de trabalho jornalístico significa um “Cálice”. Há a Justiça e a briga por indenização.

Que Chico não queira que seu musical “Roda Viva” seja remontado, se o renega, não vejo problema algum. Está vivo, não se reconhece mais na peça e tem autoridade. É propriedade sua. Mas a história em torno de “Roda Viva”, o que representou em 1968, pode e deve ser contada e recontada. Chico canalizava anseios políticos e sociais por mais democracia enquanto a ditadura durou.

Hoje, dono da bola, apita as faltas que lhe interessam. Danem-se a democracia e seu espírito coletivizante, danem-se as regras. Fiquem com a história oficial, sem contestações, pouco importa se é a real inspiração de “Com Açúcar, Com Afeto”, ou se é o suicídio falsificado de Wladimir Herzog, ou se é o “Quem Te Viu Quem Te Vê” saindo pela culatra e debatendo sua posição classista sobre biografias.

Só que esta posição cria brechas perigosíssimas. Se biografias são jornalismo, o que impediria qualquer figura pública de proibir perfis publicados em três páginas de jornal ou revista? Já não basta ser extremamente homeopata nas entrevistas que você detesta conceder? Se crônicas também são um tipo de jornalismo e podem ser musicadas, por que não proibir canções?

Hoje você é quem manda, Chico, como manda no Politheama. Falou tá falado, o lobby está em forma e há quem te siga e defenda. Mas saiba que há um time grande que adorará te ver derrotado nesta partida, pelo bem de certos valores que sua obra imortaliza.

*O escritor se defende das duas acusações feitas por Chico Buarque aqui.

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