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‘Nada a declarar’, por Demétrio Magnoli

PUBLICADO NO ESTADÃO DESTA QUINTA-FEIRA DEMÉTRIO MAGNOLI No inverno de 1077, o imperador Henrique IV fez a peregrinação a Canossa, curvando-se perante o papa Gregório VII, que o excomungara. Quase um milênio depois, Lula conheceu a sua Canossa, peregrinando com Fernando Haddad a tiracolo até o jardim da mansão de Paulo Maluf, que expôs publicamente […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 08h26 - Publicado em 6 jul 2012, 12h01
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  • PUBLICADO NO ESTADÃO DESTA QUINTA-FEIRA

    DEMÉTRIO MAGNOLI

    No inverno de 1077, o imperador Henrique IV fez a peregrinação a Canossa, curvando-se perante o papa Gregório VII, que o excomungara. Quase um milênio depois, Lula conheceu a sua Canossa, peregrinando com Fernando Haddad a tiracolo até o jardim da mansão de Paulo Maluf, que expôs publicamente sua troca de afagos com a dupla petista. O cargo federal entregue por Dilma Rousseff a um protegido de Maluf não foi o preço, mas apenas a parcela de superfaturamento cobrada pelo minuto e meio de tempo de TV que o PP vendeu ao candidato lulista à Prefeitura de São Paulo. Conhecedor do valor das obsessões, Maluf impôs a Lula a quitação da dívida por um gesto de humilhação maior que o experimentado pelo soberano do Sacro Império: o papa, afinal, dispunha de poder incomparavelmente superior ao do fugitivo da Interpol.

    Luiza Erundina suportaria a aliança com o PP, mas não tolerou a “forma” ─  a simbologia ─ que cercou o compromisso. Ela se retirou da chapa à prefeitura e acusou Lula de uma traição “a princípios”. É um recurso de autoilusão, tão patético quanto suas declarações anteriores, que invocavam a “luta pelo socialismo” para justificar sua parceria com Haddad. O “princípio” exclusivo de Lula são os interesses de seu sistema de poder. O lulismo já celebrou Jader Barbalho, José Sarney e Fernando Collor: o congraçamento com Maluf se inscreve numa linha de coerência e só pode surpreender observadores que se ausentaram do planeta durante a última década.

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    Antonio Donato, coordenador da campanha de Haddad, reagiu ao episódio criticando uma suposta incoerência de Erundina, não de Lula: “Quem quer mudar o Brasil se preocupa com o conteúdo, e não com a forma”. O seu “realismo”, difundido entre os dirigentes petistas, vai muito além do “realismo” de José Serra, que queria a aliança com o PP (e se aliou com Valdemar Costa Neto, o réu do mensalão que comanda o PR), mas não se sujeitou à exigência de avalizar publicamente a figura de Maluf. Donato está dizendo que a Canossa de Lula vale a pena, se contribui em algo para um projeto de poder já esvaziado de qualquer sentido substantivo de mudança.

    Todo o incidente seria apenas tedioso, não fosse a circunstância de que Erundina ficou só no seu protesto quixotesco. Os intelectuais de esquerda que apoiam Haddad não ergueram a voz para questionar, analisar ou explicar o gesto de Lula. Nos dias seguintes à humilhação do jardim, descortinou-se um resultado de dez anos de poder lulista: a morte da crítica de esquerda.

    Antonio Cândido, Gabriel Cohn e Eugênio Bucci preferiram nada declarar. Mario Sergio Cortella sugeriu “tocar em frente”, após uma “fase de reflexão”, mas não ofereceu nenhuma “reflexão”. Paul Singer justificou o silêncio como um dever político: “Não tenho interesse em tornar pública qualquer opinião. Vai ficar entre mim e mim mesmo”. Marilena Chauí optou por emular o antigo ministro da Justiça da ditadura, Armando Falcão, cujo célebre “nada a declarar” veiculava seu rancor contra a imprensa: “Não vou dar entrevista, meu bem. Não acho nada. Nadinha. Até logo”.

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    Ouvi, informalmente, de uma das “intelectuais tucanas” que se converteram aos encantos da candidatura de Haddad, uma versão da justificativa medíocre posta em circulação por dirigentes petistas: “Maluf por Maluf, Serra também queria”. Emir Sader, que dubla como intelectual, mas opera, efetivamente, como militante, expressou o sentido pragmático do denso silêncio geral: “O fundamental é derrotar a ‘tucanalha’ em São Paulo. Eu posso gostar ou não do Maluf, mas vou fazer campanha para o Haddad do mesmo jeito”.

    Não é verdade que os intelectuais de esquerda jamais criticaram Lula ou o PT. A crítica existia, pública e intensa, antes da chegada de Lula ao Planalto. Continuou depois, até o “mensalão”, um pouco mais amena, dirigida contra a escolha de José Alencar para a vice-presidência e as “políticas mercadistas” de Henrique Meirelles no Banco Central. Os intelectuais de esquerda justificaram sua adesão ao governo Lula sob a premissa de que, aos poucos, o lulismo se moveria para a esquerda, rompendo a teia de “alianças pragmáticas” indispensáveis no início do “processo”. A profecia não se cumpriu ─ e, ao contrário, o lulismo se identificou cada vez mais com os aliados conservadores. A crítica, contudo, experimentou progressiva rarefação, até desaparecer.

    Quanto mais o lulismo se adapta à ordem tradicional, menos é criticado pelos intelectuais de esquerda. A equação, superficialmente paradoxal, solicita explicação. Uma sedutora hipótese de solução é imaginar que tais intelectuais estão imbuídos pelo nobre sentimento de “patriotismo partidário”. Instado a se subordinar às decisões de um partido comunista que transitava para o controle de Stalin, o dissidente Trotsky invocou a marcha da História rumo ao Futuro: “Certo ou errado, é o meu Partido. Não se pode ter razão contra o Partido ou fora dele”. Singer quase repetiu Trotsky ─ e deve ter pensado na frase do revolucionário russo ao pronunciar a sua, destituída de cores épicas.

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    A hipótese, porém, não tem sustentação lógica ou histórica. Trotsky não era um intelectual acadêmico, mas um dirigente bolchevique. Na Rússia, desenrolava-se uma revolução social na moldura da crise geral europeia aberta pela Grande Guerra, não uma eleição municipal no quadro da democracia. A explicação prosaica para a renúncia à crítica é que os intelectuais de esquerda brasileiros encontraram seus lugares à sombra da frondosa árvore do poder lulista. Eles se acostumaram com os benefícios profissionais e, sobretudo, com as “rendas de prestígio” auferidas pela proximidade do governo. No terceiro mandato lulista, e diante da perspectiva de um quarto, interiorizaram como hábitos as normas de elogiar os poderosos e sustar, na hora certa, a inclinação à crítica. A evidência disso é obra de Maluf.

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