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Augusto Nunes

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‘Um tiro no escuro’, de Fred Melo Paiva

Publicado no Estadão em 20 de outubro de 2007 FRED MELO PAIVA Registra-se que a vítima, de nome Virgilio Gonçalves, 35 anos, ingeriu, no dia em que foi alvejado, frango assado com macarronada, tendo sido esta preparada por sua companheira Mirela Rocha Gonçalves, 31, com quem compartilhava residência na cidade de São José do Rio […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 04h46 - Publicado em 22 dez 2013, 16h08

Publicado no Estadão em 20 de outubro de 2007

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FRED MELO PAIVA

Registra-se que a vítima, de nome Virgilio Gonçalves, 35 anos, ingeriu, no dia em que foi alvejado, frango assado com macarronada, tendo sido esta preparada por sua companheira Mirela Rocha Gonçalves, 31, com quem compartilhava residência na cidade de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, a 450 km desta capital. Que a macarronada com frango assado consistia prato predileto da vítima, motivo pelo qual, exaurido de longa viagem na qual conduzira o próprio veículo, fora agraciado com a refeição. No dia em que foi alvejado, registra-se também que a vítima fez a barba, porque era de seu feitio e costume a depilação facial em dias de competição, sendo aquela a data de sua primeira participação no Rodeio de Novo Horizonte, cidade vizinha. Que deixou a residência supracitada às 18h45, prometendo retornar na mesma noite, conduzindo um Meriva prata, de sua propriedade, levando consigo dois “peões” de nacionalidade americana e um tradutor, visto que desconhecia a língua inglesa, e que a mencionada companheira o desejou, neste ensejo, que tivesse boa sorte e fosse com Deus, tendo proferido em seguida um “eu te amo”.

Registra-se, para o entendimento do perfil da vítima, que Virgilio Gonçalves é por vezes citado como tendo sido o “Pelé dos rodeios”, o que não teria conferência com a verdade, visto que o seu caso é mais para Romário ou Edmundo, segundo um renomado comentarista desta área, que no entanto pede para não ser identificado, mas que teria formado tal convicção porque, mesmo tendo a vítima sido tricampeã em Barretos, nos anos de 1992, 1993 e 1995, outros quatro peões também o foram. Registra-se que, apesar de Virgilio Gonçalves já ter sido premiado nas arenas com 3 caminhonetes, 26 carros, 32 motos e uma conseqüente menção na edição de 1994 do Guinness Book, a citada autoridade acredita que a carreira da vítima já estivesse em posição declinante, tendo em vista a idade avançada para a prática do exercício de equilibrar-se sobre a corcova dos eqüinos. Registra-se, contudo, que o mesmo se encontrava em primeiro lugar entre os concorrentes do Crystal Top Team, grupo patrocinado por uma cervejaria e cujos participantes disputam entre si um circuito dividido em etapas, sendo estas realizadas em diversas cidades do interior de São Paulo, Paraná e Mato Grosso. Estando o referido circuito a duas etapas do final, registra-se que Virgilio, mesmo póstumo, poderá tornar-se campeão.

Aos fatos. Posto que a vítima ingressara no veículo supracitado, ele próprio conduzindo o mesmo em direção à cidade de Novo Horizonte, registra-se que a companheira e os dois filhos do casal, Pedro Henrique, de 11 anos, e Valentina Gonçalves, de 3 meses, deixaram a residência para jantar em casa de padrinhos da citada Valentina, cujo nome foi escolhido em função das iniciais do pai, VG, que, transformada em marca comercial, poderia a pequena Valentina Gonçalves auferir disso lucros futuros. Registra-se que, logo em seguida, Mirela Gonçalves telefonou para o celular do companheiro, que mencionou ter esquecido de se despedir de Valentina, tendo o casal dado seqüência a conversa menos importante, que encerrar-se-ia com “milhões de beijos” e “eu te amo”. Que foi esta a última vez que Mirela conversou Virgilio.

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Registra-se que Mirela Gonçalves, nascida em Barretos, conheceu a vítima há 13 anos, em trailer de sanduíches na cidade de Rio Preto, onde formou-se no curso superior de Turismo. Que trabalhava como promotora de eventos, recepcionando clientes, tendo exercido a profissão em camarotes da Brahma durante festas de rodeio. Que nessa época usava tinta para clarear o cabelo. Que não “ficou” com Virgilio na primeira noite que o conheceu, tendo no entanto empreendido tal esforço no dia que se seguiu, quando viajaram para Dourados, Mato Grosso, tendo ela 17 anos. Que engravidou de Virgilio aos 19, mas que ainda assim não estabeleceram relacionamento fixo, embora jamais tenham deixado de se ver nos anos vindouros, cada qual corneando eventuais companheiras e/ou companheiros.

Registra-se também que a vítima é nascida em Barueri e criada em Pirapora do Bom Jesus, cidades da Grande São Paulo, onde seu progenitor, português de Portugal, possuía um restaurante e cinco filhos, sendo Virgilio o mais novo, e não tendo, nem o português nem ninguém, nenhuma relação com eqüinos de qualquer espécie. Registra-se, no entanto, que a vítima fugia de casa para fazendas vizinhas, oportunidade em que foi apresentado a cavalos e vacas, fato ocorrido aos 7 anos, muito antes do governador José Serra, que somente teria conhecido a mulher do boi quando tinha 50, o que não vem ao caso, doravante a experiência da vítima tenha transformado sua vida, já que aos 16 era profissional de rodeio, tendo ganhado seu primeiro grande prêmio, um veículo Chevette, pouco tempo depois, o que o levou a mudar-se de São Paulo para Rio Preto, importante centro deste esporte, por assim dizer. Registra-se que a vítima era, segundo sua consorte, pessoa desapegada de objetos materiais, tendo vendido todos os automóveis, motos e caminhonetes que ganhara, e que antes de ir a óbito possuía apenas uma casa, um Gol, um Meriva e 23 cavalos.

No dia em que foi alvejado, registra-se que a vítima não atendeu mais ao telefone celular. Que sua companheira, jantando em casa de amigos, ligou às 22h30, 23h, 23h30, e como não obtinha resposta, retornou à sua residência a 0h. Que, nesse interim, Virgilio Gonçalves chegou a Novo Horizonte, estacionou o veículo, retirou a “tralha”, que vem a ser a vestimenta e os equipamentos para montar o cavalo, e dirigiu-se ao local onde os “peões” trocam de roupa e selam os animais. Que este local fica sob o palco em que o locutor narra o rodeio e as duplas sertanejas se apresentam, logo atrás dos bretes, de onde partem os “cavalos puladores”. Registra-se que a vítima já tinha se trocado, e que por volta das 23h estava pronto para a disputa, vestido com a espora que era para ele uma espécie de amuleto, tendo inclusive o nome de “Roseta”. Que nessa hora, embora não se tenha prova de fato, a vítima rezava para Nossa Senhora Aparecida, sendo este um costume que tinha antes de subir no cavalo.

Para efeito de registro, que se conste a intensa religiosidade da vítima, que já se deslocou a pé de São José do Rio Preto a Aparecida do Norte, em razão de promessa feita anteriormente, e não revelada neste boletim por segredo de família, tendo consumido na tarefa 16 dias de trote ininterrupto. Registra-se ainda que, na companhia de Mirela Gonçalves, freqüentava a Igreja Nossa Senhora dos Pobres, em Rio Preto, sempre às terças -feiras, e que lá pretendia se casar com a mesma, a exemplo do batizado da filha Valentina, acontecido no local uma semana antes de Virgilio vir a óbito. Registra-se também que a vítima usava uma medalha de Nossa Senhora, que não obstante seja a padroeira do Brasil, acumula o cargo de “protetora dos peões”.

Momentos antes de ser alvejado, estando a vítima pronta para montar o cavalo, já devidamente trajado com Roseta e medalha de Nossa Senhora, as luzes da arena então se apagaram para que se desse início a uma queima de fogos. Registra-se que, no escuro, a vítima vinha a ser pessoa discreta, medindo pouco mais de 1,70 metro, embora tivesse corpo atlético, braços fortes e “barriga tanquinho”, segundo descrição da companheira. Registra-se que, interrompida a academia, exercitava-se jogando futebol com considerável qualidade, mesmo sendo ele corintiano. Que era pessoa vaidosa, que gostava de jeans, camiseta, sapatênis e perfume, e que, em decorrência da necessidade, a mencionada companheira poderia fazer as suas unhas. Isso, contudo, realmente não importa.

Registra-se que, estando as luzes da arena apagadas, e iniciando-se a queima de fogos, um sujeito teria se aproximado da vítima e disparado dois tiros praticamente a queima-roupa, pelas costas, fazendo com que o som dos disparados se confundisse com o barulho dos fogos. Uma bala acertou o braço esquerdo da vítima. A outra penetrou na parte posterior da cabeça, atrás da orelha esquerda, atravessou o cérebro e alojou-se do outro lado, na porção direita do crânio. Virgilio caiu desacordado.

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A 0h15 Mirela recebeu o telefonema de um amigo, informando sobre “um acidente” com Virgilio. A sua casa encheu de gente. Mirela pegou o carro e foi para Catanduva, cidade vizinha para onde Virgilio tinha sido levado, ainda com vida. Mirela chegou junto com a ambulância. Virgilio estava tão inchado que ela só o reconheceu por causa das manchas do vitiligo nas mãos e nas pernas. Para o motorista da ambulância, ela perguntou o que tinha acontecido. “Você não sabe?”. Naquele momento, veio à cabeça dela a recordação do último rodeio acontecido em Novo Horizonte, no passado. Um “peão” chamado Rinaldo Aragão teria feito ameaças indiretas a Virgilio, que teria negado a ele convites para participar de outros rodeios. “Foi tiro?”. De 38.

DOMINGO, 14 DE OUTUBRO

Peão baleado não resiste

Virgilio resistiu por três dias, no feriado de Nossa Senhora Aparecida. Morreu domingo passado. Registra-se que a vítima deixa companheira e três filhos, um deles, de 16 anos, fruto de outra relação. Que Rinaldo está foragido e tem prisão decretada.

O peão Virgílio Gonçalves, de 35 anos, baleado quinta-feira retrasada, morreu num hospital de Catanduva (SP). O principal suspeito é o também peão Rinaldo Aragão, de 46 anos. Montando cavalo, Virgilio foi tricampeão em Barretos nos anos 90. Aragão está foragido.

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