Publicado na edição impressa de VEJA
AUGUSTO NUNES
Fregueses do noticiário político que passam dos 90 anos agarrados às mesmíssimas ideias que defendiam antes da chegada aos 30 costumam ser favorecidos por uma brasileiríssima disfunção visual que induz o portador a enxergar um monumento à coerência onde só existe um caso perdido de teimosia. O jornalista e governador de Pernambuco Barbosa Lima Sobrinho, por exemplo, foi festejado nos obituários pela fidelidade a dogmas nacionalistas contraídos ainda no berçário. O arquiteto Oscar Niemeyer enrolou-se na bandeira comunista já na infância da União Soviética e continuou a empunhá-la depois da queda do Muro de Berlim. Ambos se criaram nessa tribo que tem como pajé perpétuo o mito biografado por Daniel Aarão Reis no livro Luís Carlos Prestes — Um Revolucionário entre Dois Mundos.
Traída com incômoda constância pela adjetivação compassiva ou por tentativas de humanizar episódios que escancaram o desprezo por vidas alheias, a simpatia do autor pelo personagem não danificou, felizmente, a visão do professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense. Melhor assim. Aarão Reis pertence à tribo que conta o caso como o caso foi, o que lhe permite compensar os pecados da forma com um conteúdo que ressuscita o gaúcho de Porto Alegre em sua estranha inteireza. Até que a saga do protagonista seja dominada pelo Prestes convertido à religião comunista, a reconstituição da trajetória expõe aos olhos do leitor todos os esboços que precederam o retrato definitivo.
Contempla-se de perto o cadete com o dedo permanentemente no gatilho, o rebelde sem alguma causa que o povo pudesse decifrar, o tenente com uma das mãos no coldre e a cabeça povoada de platitudes grandiloquentes, o camelô das revoluções por minuto, o moralista impiedoso com violências impostas aos moradores dos lugarejos incluídos na rota do exército inverossímil, o líder de massas a quem sobravam seguidores e faltava consistência ideológica ─ não o foram poucos os Prestes. Nenhum deles, de qualquer modo, escapou ao controle da matriz autoritária.
Nenhum deixou de sujeitar-se às determinações do turrão onipresente, onisciente e irredutível. O comandante de fato da Coluna Prestes ouvia com impaciência e rejeitava com réplicas ríspidas quaisquer objeções ou conselhos apresentados por companheiros insatisfeitos com a estratégia concebida sem consultas para a próxima batalha. Ele fez a guerra na hora da paz e capitulou quando as circunstâncias imploravam pelo confronto. Na chefia do Partido Comunista Brasileiro acumulou um acervo incomparável de erros bisonhos, equívocos letais, precipitações obtusas, escolhas obscenas. É improvável que algum brasileiro tenha errado com mais frequência e convicção que Luís Carlos Prestes, vencido em todos os barulhos em que se meteu a partir de 1930.
As últimas batalhas vitoriosas ocorreram ainda na década de 20, ao fim de embates entre a coluna e inimigos em farrapos, batalhões de “voluntários” alistados involuntariamente por imposição do coronel municipal, até bandos de cangaceiros. Acabaram desbotadas pela derrocada final da revolução sem chances e pela antecipação do exílio. A sequência de malogros foi aberta em 1935 pela Intentona Comunista. Tão amalucada quanto o nome que os vencedores lhe pespegaram, a quartelada fracassou miseravelmente. Serviu apenas para engordar o balaio de pretextos invocados por Getúlio Vargas para implantar a ditadura do Estado Novo e terminou com o PCB na ilegalidade e Prestes e centenas de parceiros de aventura na cadeia.
O perdedor incansável afundou de novo em 1945, quando apoiou — “para atender aos interesses da União Soviética e fortalecer a classe trabalhadora” — a permanência no governo federal do mesmo Getúlio que endossara a deportação para a Alemanha de sua mulher, a comunista e judia Olga Benário (foi ela quem impôs ao marido já quase quarentão, aliás, a única perda que o alegrou: a da própria virgindade). Prestes perdeu outra vez em 1964, quando festejava o iminente desembarque do governo João Goulart no paraíso socialista. Nos anos 1980, o dono do PCB perdeu o controle do partido. Em 1989, o aliado Leonel Brizola perdeu a eleição presidencial.
Ao morrer, em 1990, o “cavaleiro da esperança” só não perdera a certeza de que era questão de tempo a erradicação dos lacaios do imperialismo ianque, o sumiço do capitalismo no mundo inteiro e o sepultamento em cova rasa da burguesia exploradora. “Infelizmente, para ele, não viu o fim da União Soviética”, compadece-se o biógrafo. Hoje no PSOL, o democrata Aarão Reis é um crítico impenitente da opção pela luta armada contra a ditadura militar. Antes de se tornar um dos principais ideólogos do MR-8, ele militou no PCB. Sabe, portanto, que dificilmente se livraria de uma cela caso o biografado se tornasse ditador. Mas todos os comunistas ou ex-comunistas são netos honorários de Luís Carlos Prestes. Por mais teimoso que o Velho seja, é preciso ser clemente com o avô.