Marcos Troyjo
Peter Navarro era um economista fora da “premier league” do debate norte-americano de políticas públicas até a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais em 2016.
Sua maior notoriedade vinha de um duo livro-documentário sobre os efeitos perniciosos da ascensão econômica e política da China.
Dado o elevado grau de interdependência entre EUA e China — e, a bem dizer, entre Europa e China — muitos acreditavam (eu inclusive) que uma guerra comercial de maiores proporções jamais se tornaria realidade.
Menos provável ainda seria a chance de reedição de uma Guerra Fria, ainda que seus embates se dessem menos no campo estratégico-militar e mais no econômico-comercial.
A constatação, no entanto, é a de que os diagnósticos de Navarro se transformaram em pilares da atual cosmovisão de Washington para um mundo em que a China arremete.
É forte a perspectiva, robustecida também pela análise comparada de como países experimentaram a Grande Recessão de 2008, que o menos afetado por turbulências graves que sacodem os mercados financeiros é a China.
Tal visão se ampara na noção de que a China, detentora de caudalosas correntes de comércio nas quais é quase sempre polo superavitário, repousa sobre maciças reservas internacionais.
A China é a principal credora soberana do governo dos EUA, sob a forma dos títulos do Tesouro Americano que tem apetitosamente comprado ao longo dos anos.
Mesmo com toda a crítica vocalizada por Pequim na última década — centrada nos “insustentáveis padrões” de endividamento americano — ou ainda a sugestão (para inglês ver) da necessidade de uma nova moeda internacional de referência, a China, mais do que qualquer nação, está, segundo Navarro e assessores, vertebrada para encarar oscilações na economia global.
A doutrina da “Morte pela China” enxerga também uma cartografia em que se operou uma reorientação do Greenwich geoeconômico. Novas — e cada vez mais intensas — filiações à economia chinesa como bússola bem merecem o nome de sinodependência.
Em 2010, a revista The Economist chegou a criar um índice de sinodependência, cujo objetivo é mensurar a performance das ações de companhias dos EUA que mais mantêm fluxos de negócios com a China. No entanto, o conceito de sinodependência é útil em dimensões mais amplas.
A sinodependência tem também um molde inicial concatenado por Washington. Foi laboratorialmente planejada na Casa Branca de Richard Nixon, tendo o então secretário de Estado Henry Kissinger como engenheiro e mestre de obras.
O objetivo era criar, mediante concessões de acesso ao mercado dos EUA, uma cisão no comunismo como força geopolítica. A meta foi alcançada. As relações entre China e EUA ajudaram a levar economicamente a União Soviética ao ostracismo.
O corolário para a China nestes últimos 40 anos é o resgate de 800 milhões de pobres e miseráveis para a esfera do emprego e consumo e a consolidação de uma classe média de 300 milhões de pessoas.
Os EUA, nessa ótica, também lucraram com a crescente sinodependência. Seu antagonista geopolítico desapareceu. Empresas americanas passaram a utilizar a China para desovar funções empregatícias menos qualificadas e remuneradas.
Assim, ainda que em território chinês, mantiveram na conta de seu Produto Nacional Bruto parte importante da manufatura de baixo valor agregado. Isso, segundo a doutrina “Morte pela China”, deixou a indústria americana preguiçosa e complacente.
Nos anos 1940, George Kennan, ministro-conselheiro da Embaixada dos EUA em Moscou, redigira um “Longo Telegrama” (mais tarde adaptado e publicado na forma de artigo sob pseudônimo “Mr. X” na revista Foreign Affairs com o título “Fontes da Conduta Soviética”). O texto virou a referência para o delineamento de toda politica exterior dos EUA que vigorou de Truman a Bush pai.
Se, de fato, os EUA vierem a engajar-se numa guerra fria com a China, muitas das bases para tais ações externas estarão assentadas na doutrina da “Morte pela China” formulada por Navarro.