Guilherme Fiúza (publicado na Forbes Brasil)
O mundo se impressionou com a série “Chernobyl”, da HBO. Foi aquele fascínio doloroso, como sempre ocorre quando se faz uma viagem necessária a uma realidade tétrica. Como puderam tentar censurar uma nuvem radioativa? Onde a humanidade estava com a cabeça quando produziu regimes desumanos como o totalitarismo soviético?
(Nota para quem ainda não assistiu a série: há algumas referências à trama a seguir, o que antigamente era comum nas resenhas lidas antes de se ligar a TV ou sair para o cinema. Hoje, na era da ultrassuscetibilidade a tudo, tem gente se matando por causa do tal do spoiler. Então, por gentileza, baixe essa arma.)
A mentira levada às últimas consequências no pior desastre já provocado pelo ser humano foi uma lição para o mundo não esquecer nunca mais. Só que ele já esqueceu. Ou então não aprendeu — o que dá no mesmo.
A explosão do reator 4 da usina nuclear ucraniana em abril de 1986 se deu por vários fatores técnicos e operacionais (todos eles políticos). Vale destacar o mais prosaico — e mais simbólico — deles: economia porca. Exatamente isso: um fator decisivo para a tragédia que provocou muitos milhares de mortes (a conta exata se revelou impossível) na ex-URSS e na Europa foi a pura mesquinhez na escolha de materiais e salvaguardas de segurança. Como declara o protagonista da série, o físico Valery Legasov, Chernobyl virou catástrofe por ser mais barata.
Aí se impõe a questão central. O regime comunista soviético era perverso, mas não era masoquista. Tinha um plano de dominação férrea, que inclusive atravessou o século 20 quase inteiro, e precisava de bons alicerces que não podiam ruir como farelo. Era um modelo de poder supostamente representativo de uma doutrina, de uma filosofia política. Ou seja: qualquer erro na experiência da URSS se transformaria em propaganda negativa do socialismo.
Eis aí a constatação bizarra: com toda essa importância política em jogo, falou mais alto a gana pelo dinheiro — e nem dá para dizer que era para priorizar as forças armadas. Pelo nível estratosférico de corrupção encontrado por trás da cortina de ferro, a economia porca em Chernobyl não sustentava o regime — sustentava os parasitas do regime.
E aí não pode haver dúvida: ou existe doutrina e ideologia, ou existe gula. Ainda não foi inventada a gula ideológica, ou a doutrina dos esganados.
Com todo o terror revisitado pela série da HBO, ainda assim haveria o efeito paradoxal do alívio — a sensação de que aquele pesadelo já passou. A má notícia é que não passou. A nuvem de radiação foi contida, mas a mentira não. E não estamos mais falando da mentira comunista.
Ou talvez estejamos falando de versões transgênicas dela. Se a farsa soviética não está mais aí, temos no lugar dela farsas bem menos óbvias, portanto bem piores. O vilão com cara de vilão é sempre menos perigoso. É bem verdade que o ideário comunista chegou a estar associado a certo romantismo salvacionista, mas o monstro ditatorial da URSS já não iludia ninguém quando a usina nuclear foi pelos ares.
A mentira hoje tem cara de anjo. A Alemanha, por exemplo — traindo sua cultura de pragmatismo político-administrativo — entrou de cabeça numa das grandes fraudes retóricas do século 21. A gestão Angela Merkel apostou tudo na “resistência democrática” contra o fascismo imaginário.
A Europa hoje pratica o mais rasteiro populismo demográfico (fingindo que todos os flagelados do mundo podem morar em Paris numa boa) e simula uma resistência contra o populismo reacionário xenófobo do capeta mancomunado com belzebu — e é claro que o fetiche preferido dos democratas de festim é Donald Trump. O problema é que as minorias e os imigrantes vão bem, obrigado sob a gestão do presidente americano, enquanto têm suas vidas destroçadas na maior parte da Europa boazinha. Populistas são os outros.
A demagogia politicamente correta e o populismo fantasiado de humanismo progressista, que se espalharam pelo mundo e arrancaram as calças do Brasil, são a mentira radioativa do século 21.