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“Ainda farei livros onde nossas crianças possam morar” e outras notas

O planeta bolsonarento orbita entre a bisonhice e a barbárie

Por Valentina de Botas
Atualizado em 30 jul 2020, 20h21 - Publicado em 26 ago 2018, 07h28

Valentina de Botas

Imagine que você estava jiboiando no baixo clero do Congresso Nacional, desfrutando do auxílio-moradia numa boa apesar de ter residência própria, pagando empregados domésticos com verba da Câmara, ajudando o PT a arcaizar o país com teu voto quase sempre favorável à pauta econômica petista, emplacando alguns projetos irrelevantes que se podem contar nos dedos de uma só mão para favorecer ainda mais algumas corporações. Enfim, o conforto de uma vidinha pública medíocre de 28 anos estéreis para o Brasil e para o estado que você representa, cuidando da família e do patrimônio. De repente, quando a porção perniciosa da Lava Jato inutiliza a política como via institucional para a sociedade encaminhar suas demandas, você reluz na ruína institucional e é feito candidato à Presidência da República, com ameaças reais de vencer. Num átimo, você é a estrela de um comício eleitoral. O clamor da multidão, o cheiro da multidão, os empurrões da multidão, as apalpadelas da multidão, as vozes entoando teu nome na multidão inebriam, entontecem. É fascinação. Sonhando os sonhos mais lindos, você imagina, numa clareira dos sentidos, a própria imagem subindo a rampa do Planalto. Glorioso, com a faixa presidencial enfeitando o peito patriota heterossexual de direita-tabajara, carregado nos ombros da nação bolsonarenta ao som tonitruante de marcha-soldado-cabeça-de-papel-quem-não-marchar-direito-vai-preso-no-quartel.

Momento breve e fugidio como aquele em que Bernstein, no bonde em movimento de “Cidadão Kane”, avista Liege de relance para atá-la na retina, na memória, nos sentidos por toda a vida, porque, enquanto você está aqui vivendo este momento lindo, misturando Orson Wells ao som imaginário de Elis Regina e Roberto Carlos, algum antipatriota põe uma criança no teu colo! É o sistema atuando para destruir o único candidato que pode derrotar o PT, o único candidato que é da seita da direita verdadeira, o único candidato que mistura dívida pública com desemprego e kit gay para balbuciar uma resposta a uma pergunta que fez a alma sair do corpo, o único candidato que é ficha limpa além de todos os outros, enfim, o-único-candidato-que.

Mesmo o sistema escolhendo o candidato antissistema, veja só a armadilha: uma criança no teu colo! Quem nunca se viu nessa situação? Que pergunta poderia fazer para mitar num vídeo que vai bombar nos canais dos carros-alegóricos da seita da direita verdadeira no Youtube?

Como você se chama? Quantos anos você tem? Qual o teu super-herói? Você já vai à escola?

Ora, qualquer candidato decente pode fazer perguntas corriqueiras assim; você, não; você é o mito e vai mitar: pergunta à criança se ela sabe atirar. Pensei logo em Monteiro Lobato, que abrigou crianças no seu planeta genial. O planeta bolsonarento orbita entre a bisonhice e a barbárie.

 

Jogos adultos

Não é a primeira vez que Bolsonaro mistura crianças e armas, e sua escolha pela escala da insensatez em que dobra a meta a cada espanto indica que não será a última. Os adoradores o defendem dizendo que melhor uma criança estar perto de uma arma do que perto de um peladão num museu; as crianças têm/usam/convivem com armas na favela e tudo bem? O problema desse raciocínio, chamemos assim, é que ele amputa a civilização do horizonte e responde a uma barbárie com outra restringindo o mundo ao sombrio. Ora, nem tocar um homem nu (seja em que ambiente for) nem tocar numa arma deve cercar a infância; e, não, não está tudo bem com o que acontece nas favelas, não é porque não conseguimos levar a civilização morro acima que disseminaremos o primitivismo no asfalto. Reclamar do despreparo desse senhor para responder a essa complexidade leva muitos dos simpatizantes a reagir outra vez eliminando a lucidez — se já tivemos Dilma como presidente, por que cobram preparo de Bolsonaro? Ora, a resposta habita a pergunta: exatamente por termos sido infelicitados pela parvoíce dessa senhora é que não precisamos de outra dose.

Mas, de fato, Bolsonaro parece ser a resposta que muita gente encontrou no vácuo do Estado. Outro argumento recorrente é “brinquei de bandido quando era criança, com armas de brinquedo, e não virei bandido”. Ótimo, fico feliz, pena que o argumento de nula sofisticação e de sentido raquítico desconsidere que também muitos bandidos devem ter brincado de bandido quando criança e que se está falando da realidade, dimensão cujo roteiro é indeterminado, ao contrário de uma brincadeira. Armas têm lugar num plano sério de segurança pública e, se Bolsonaro é capaz de desenvolver um, que o apresente no espaço devido, não em comícios usando uma criança para manipular, à caça de votos, o legítimo anseio da população por segurança. E nem precisa de tanta propaganda a favor de armas, parecendo lobby dos mais aguerridos, pois a legislação atual o intencionalmente mal explicado Estatuto do Desarmamento permite a respectiva posse, só restringe o porte. Que boa parte da população e eleitores de Bolsonaro aprovem isso, eu compreendo, mas acho que merecemos tentar apurar a perspectiva e incluir na coisa toda a civilização e a construção de um caminho para ela.

 

Petistas: Calhordas sem fronteiras

Na semana passada, Fernando Henrique Cardoso deixou a campanha e os eleitores de Alckmin de cabelo em pé ao responder a um repórter sobre uma eventual aliança entre PT e PSDB no segundo turno: “eu não me oporia”, disparou o nosso sociólogo que me mata de susto. À coisa foi dada mais destaque por oportunistas de todas as cores do que à fala assertiva de Alckmin dizendo que não faria tal acordo.

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FHC se redime daquela declaração com um artigo publicado no Financial Times, em que, com altivez e coragem, questiona o New York Times pela publicação de um artigo calhorda, cínico e mentiroso de Lula. FHC também elogia a Lava Jato e o legado positivo do PSDB malcuidado por seus membros, mas também admite outros erros do partido; otimista, reconhece o momento amargo que atravessamos como necessário às mudanças; e manda um recado para Lula e seus porta-vozes na imprensa internacional que levam a calhordice petista além das nossas fronteiras: “O ex-presidente retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, na qual o Estado de Direito deu lugar a medidas arbitrárias destinadas a enfraquecer ele e seu partido. Isso não é verdade”. Por menor alcance que tenham suas palavras, é importante não deixar que a única voz audível seja a dos calhordas.

 

Não queria ter razão, queria ser feliz

Primeiro, os ministros do STF vieram e violaram a Constituição Federal para afastar Eduardo Cunha da presidência da Câmara; como Cunha era bandido, quase ninguém falou nada. Depois, eles vieram e violaram a CF para afastar Aécio Neves do mandato de senador; como Aécio foi considerado culpado antes do julgamento se tornando, então, um bandido, quase ninguém falou nada. Depois, eles vieram e violaram a CF para fazer de Fachin o relator do caso JBS; como era para pegar o bandido vampiro, quase ninguém falou. Depois, eles vieram e violaram a CF para investigar o presidente durante o mandato por fatos anteriores a ele; como era para pegar o bandido mordomo quase ninguém falou nada. Então, Barroso veio e está violando a CF para legislar a favor do aborto. Como quase ninguém falou nada antes e a maioria até aplaudiu o moralismo submeter a legalidade degradando o estado de direito; quem se levantou contra isso e foi acusado de defender bandido repete agora o que dissera na primeira vez que eles vieram: quem pisa na lei para pegar bandido, pisa na lei para pegar inocentes.

Embriões, fetos, bebês: poderia haver vítimas mais inocentes dessa marcha da insensatez? Não se trata de ser a favor ou contra o aborto, mas de a questão ser matéria cujo espaço institucional para definição é o Congresso, não o STF com ministros aprovados em sabatinas no Senado tão amistosas quanto uma reunião de Tupperware. Quem antes se calou, aplaudiu ou acusou de defender bandido quem apenas pedia um pouco de reflexão, contemple o espetáculo que está longe de acabar.

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