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Augusto Nunes

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As ruas perderam um grande porta-voz

Ricardo Boechat, o colunista famoso que se transformou na maior estrela do radiojornalismo, morreu num acidente tão incomum quanto a vitoriosa trajetória

Por Augusto Nunes Atualizado em 17 fev 2019, 01h07 - Publicado em 16 fev 2019, 16h27

(Publicado na edição impressa de VEJA)

Nascido em Buenos Aires, Ricardo Eugenio Boechat ficava especialmente eufórico com a vitória sobre a Argentina de uma seleção brasileira de qualquer esporte. Crescido em Niterói, parecia ter assimilado no berçário o sotaque de quem fora carioca em dezenas de vidas passadas. “Ele começou a falar perfeitamente com um ano e meio”, conta a mãe, Mercedez Carrascal. E nunca mais parou. Mal saído da adolescência, aprendeu a condensar as frases longas e bem articuladas em notas exemplarmente concisas, como impunha a sua equipe de repórteres o colunista Ibrahim Sued, professor pouco letrado mas muito exigente. Boechat ainda tinha cabelos encaracolados quando, ao lado de Zózimo Barrozo do Amaral, transformou colunas de amenidades em leitura obrigatória para gente interessada em assuntos sérios. Já chegara à idade em que apresentadores são aposentados ao estrear no comando do Jornal da Band. Perdera os cabelos ao ser contratado pela BandNews. E fora incorporado ao clube dos idosos oficiais quando se tornou o mais famoso radialista do país.

O estilo do âncora temporão mudou a história do radiojornalismo. Em alguns segundos, trocava a expressão feroz que sublinhara o comentário colérico pelo sorriso irônico que precedia a pérola de humor inteligente. Numa manhã, interrompeu a catilinária inspirada na roubalheira do Petrolão, ligou para a mãe e perguntou-lhe se havia recebido propina de alguma empreiteira. Ao ouvir a negativa de Mercedez, retomou a ofensiva: “As mães de vocês, ouvintes, também não ficaram com o dinheiro. Então, quem é que roubou?” Fornecia o número do próprio celular aos interessados e escutava os que ligavam com evidente atenção. Essa interação heterodoxa levou a audiência à estratosfera, aproximou-o do homem da rua e fez do apresentador um porta-voz dos sem-voz. Essa trajetória tão singular, percorrida em apenas 66 anos, teria um desfecho igualmente incomum. Neste 11 de fevereiro, ao voltar de Campinas para São Paulo ao lado do piloto Ronaldo Quattrucci, o jornalista Ricardo Boechat morreu em consequência de uma colisão entre um helicóptero e uma carreta — o primeiro acidente do gênero ocorrido no Brasil.

Justamente ele, que passou a vida dentro de táxis. Nos anos 80, Boechat resolveu seguir o exemplo do banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e do lobista Jorge Serpa, que só andavam em táxis arrendados. Ambos evitavam circular com veículos de luxo para esconder que eram muito ricos. Boechat fez a mesma op­ção por ser pobre, e perdulário demais: vivia emprestando o que não tinha. Além de faltar-lhe dinheiro, amava livrar-se do volante para contemplar o mundo ao redor. Gostava tanto que a curiosidade e o jeito dis­traí­do resolveram juntar-se para dar-­lhe uma lição. Ao esbarrar num congestionamento em Botafogo, sempre empunhando o celular, braço estendido janela afora, perguntou a um pivete se acontecera algum assalto. “Não”, respondeu o interpelado. “Mas vai acontecer agora”, emendou enquanto agarrava o celular do passageiro curio­so e saía em desabalada carreira.

O incidente não o afastou dos táxis, muito menos dos taxistas, que compunham a mais numerosa fatia de ouvintes do campeão de audiência. Mobilizados pela trágica notícia, centenas deles improvisaram um abraço ao prédio da Band em São Paulo onde fica o estúdio que abrigava o amigo morto. E o caixão com o corpo de Boechat foi enfeitado com placas e adereços de táxis que emocionaram Mercedez. “O caixão de luxo não era um caixão de Ricardo”, resumiu a mãe. “Adorei o caixão com o táxi em cima porque isso era Ricardo.” Ela acha que o filho “ficaria assombrado com a quantidade de gente que demonstrou carinho por ele”. Avesso a vaidades, Boechat ficaria mais espantado ainda se soubesse que seria manchete de todos os grandes jornais e ocuparia nas emissoras de rádio e TV espaços reservados à morte de artistas célebres. Ele não perderia a chance de ironizar as trapaças do destino. Tampouco perderia a chance de alvejar os amigos com seu humor desconcertante, de que fui testemunha ou vítima durante 35 anos de convívio.

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No fim de 2001, voltei ao Rio para dirigir o Jornal do Brasil junto com Boechat. Ele sabia que eu já havia morado três vezes por lá, conhecia a cidade muito bem. Mas avisou que eu desconhecia a vista mais bonita do Rio. No dia seguinte, levou-me de carro para Niterói, estacionou perto das areias de Icaraí e ordenou: “Veja como é o Rio visto daqui”. Foi a única vez que fui a uma praia para olhar outras. Pouco depois, Boechat passou-me um papel com o número de um celular que eu só deveria acionar se precisasse dele em situações de emergência. Precisei usá-lo já na tarde seguinte. Ninguém atendeu na primeira das catorze chamadas que faria ao longo da madrugada. Na quarta tentativa frustrada, acusei-o de irresponsável. Na quinta, o irresponsável virou “cafajeste”. Na sexta, botei a mãe no meio. Na sétima, fiz gravíssimas acusações a toda a família. O último recado deixaria ruborizado qualquer campeão de bate-boca em cortiço.

Boechat só deu as caras na manhã seguinte. Perguntei-lhe se ouvira os recados, ele garantiu que não recebera nenhum. Resumi o teor impublicável das mensagens. Pediu-me que mostrasse o número. Apresentei-lhe a fora de papel que me dera. Camuflando a molecagem com a candura do olhar azul, encerrou a questão: “Você deve ter errado algum algarismo. Esse aí é o celular do Nelson Tanure”. Tanure era o dono do Jornal do Brasil. O patrão nunca tocou no assunto. Nem eu. Boechat de vez em quando lembrava o episódio e louvava a minha façanha: ele repetia que não conhecia mais ninguém que passou a madrugada insultando o patrão sem ser demitido.

O Brasil perdeu um grande jornalista. Eu perdi um amigo que tornou minha vida muito mais risonha.

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