Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)
A capacidade de adaptação às mudanças sempre foi o fator decisivo de sobrevivência das espécies. Nas sociedades humanas também. A velocidade de resposta das instituições à mudança é o fator decisivo de sucesso.
Os Estados Unidos só viraram o que são hoje porque ao longo de todo o século 20 tiveram um quase monopólio da flexibilidade institucional que a vida como ela é requer. O resto dos países europeus, dos quais o Brasil é um prolongamento, não nasceram democráticos como eles. Foram obrigados a se ir democratizando, de confronto em confronto, pelos oprimidos do absolutismo que conheciam do novo sistema inventado na América e os encantava pelos efeitos que produzia pouco mais que ecos.
Foi esse desconhecimento que permitiu que tantos adotassem da democracia o discurso, mas mantivessem do absolutismo a essência. Os portugueses foram os mestres dessa arte. No “sistema corporativo” que inventaram, a “cabeça” (antes o imperador e depois da República o Judiciário, o Poder não eleito que herdou as prerrogativas dele) reserva a cada parte do “corpo” o “direito especial” que houver por bem lhe outorgar. Esse “especial”, a exata negação da essência da democracia, cuja base é a igualdade de direitos, e o poder de distribui-lo a seu bel-prazer, é o que nos mantém, a eles no poder e a nós na servidão semifeudal de que nunca saímos.
Da “direita” ou da “esquerda”, com ou sem “revoluções”, eles vêm sempre dos 5% da população que recheiam as corporações que controlam o Estado, as estatais e o poder de se autoatribuir privilégios.
O círculo não foi rompido com o advento do governo Bolsonaro. O que ele representa é um movimento de subversão da hierarquia interna do “sistema” obtido com o recurso das redes sociais num momento em que a crise do Estado levou o antigo caminho das urnas a um desmonte parcial. O governo eleito vem do “baixo clero”, sim, mas da mesma “nobreza” de detentores de privilégios em que o País continua dividido desde que foi arrancado de sua “americanidade” pela invasão do Rio de Janeiro pela corte portuguesa, em 1808.
Tiradentes foi o último episódio realmente revolucionário do Brasil. Sendo a única revolução real da humanidade a que decorre da “iluminação” da conquista da autonomia na busca da verdade que só a educação proporciona, a manutenção da sombra da ignorância é, como sempre foi, a arma essencial do status quo. Com o recrudescimento da censura, depois do enforcamento do alferes, a toda referência que não fosse europeia que a República não conseguiu romper, quem sonha com mudanças no Brasil sonha com os efeitos de um processo cuja mecânica o País inteiro desconhece quase absolutamente, e que é fruto de uma tecnologia de construção de instituições cheias de sofisticadas sutilezas. É nisso que reside a nossa maior dificuldade. O que se pode reformar, para colher lá na frente esta ou aquela mudança real de rumo de uma sociedade, são as instituições. Mas muito maior que a dificuldade de saber como conseguir abrir a porta a mudanças tem sido a de formular quais mudanças, exatamente, é preciso fazer para colher a democratização que todos desejam.
A História tem seus caprichos. Bolsonaro não é a revolução, mas chega no momento em que ela se tornou inevitável. Uma vez no poder, deu-se conta, por meio de um eficiente trabalho intensivo de informação de sua equipe econômica, da urgência e da gravidade terminal da crise da Previdência. Conduzido por ela, vai bater na barreira de sempre. O medo de cair no vácuo venezuelano levou a uma supervalorização da Constituição antes da definição da sucessão pelas redes sociais. Mas o fato é que, na ausência do “direito divino”, ela foi transformada no congelador de privilégios da hora. E tem sido brandida como antes se brandia a heresia para impedir avanços.
A verdade é a única arma capaz de romper essa barreira. A reforma de Paulo Guedes, por mais próxima que chegue da profundidade com que foi desenhada, apenas abrirá a porta a um processo de ajustes permanentes em que o Brasil terá de se engajar daqui por diante, dadas as mudanças na extensão da vida humana, nas relações de trabalho, nos costumes, em tudo, enfim, que até aqui descrevia a condição humana. A Previdência, assim como tudo mais na ordem institucional brasileira e mundial, passa a ser um processo em permanente evolução que vai requerer retoques em velocidade alucinantemente crescente. Se nunca fez sentido enfiar privilégios previdenciários na Constituição, portanto, agora faz menos ainda. Desconstitucionalizar a Previdência é, portanto, um objetivo absolutamente prioritário.
A forma como a vida nacional já vem sendo decidida através das redes, contornando instituições esclerosadas, proporciona uma sensação de alívio neste primeiro momento de “vingança” dos “sem-voz”, mas não passa de uma reprodução perigosamente tosca do que os suíços vêm praticando há 729 anos e os americanos de lá importaram há cerca de 120. Como toda ferramenta, esse expediente serve, porém, a quem quer que recorra a ele, para o bem ou para o mal. O que tira desse sistema o seu potencial venenoso é a construção de um modelo confiável de representação do País real no País oficial. Não há mal nenhum em que o povo encurte os caminhos das suas relações com o governo desde que seja para REFORÇAR a representação aumentando o poder de cada representado sobre O SEU representante. Isso só se consegue com eleições distritais puras. Desde que se saiba exatamente qual representante representa cada conjunto de brasileiros, não há mal nenhum, muito ao contrário, em que a relação entre eles seja a mais direta possível, para fazer ou desfazer leis, para encurtar ou encompridar mandatos. Mas se esse encurtamento partir do governo, o resultado é opressão.
Nesse sentido, os Bolsonaros vêm “acertando no errado”, o que rende poder, aquela coisa que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando é absoluto. Por isso é bom não esquecer jamais. Não existe democracia sem representação.