É a lama
No Brasil, sai governo-entra governo, desmorona em torno de si e se distrai com os próprios escombros discutindo a poeira que se ergue até que ela assente
Valentina de Botas
O que há em comum, além da cafajestice, entre o PSOL insinuar que Flávio Bolsonaro tem parte na morte de Marielle Franco e o clã Bolsonaro sugerir que Jean Wyllys está envolvido no atentado do Adélio Bispo contra a vida de Bolsonaro? Brumadinho. Brumadinho, Mariana, o levante dos criminosos no Ceará e outros flagrantes de não civilização mantêm o país integrado, fazem-no um só. Esqueçam a cópula incessante entre os primitivismos contrários e complementares, a língua portuguesa maltratada, a bandeira e outros símbolos nacionais, o Carnaval que nos anestesia ou nos incendeia por uma semana, o almoço de domingo na casa da sogra, o saci no bambual e o curupira indo quando está voltando, a malemolência do brasileiro e a ginga da brasileira: o que nos torna e nos mantém brasileiros é o desmoronamento que nos joga na lama que provoca o desmoronamento. Uma sina? Sim, enquanto o poder público, em conluio com elites depravadas por descaso e ganância, não tratar Mariana e Brumadinho com cadeia para os chefões de multinacionais. Mas não temos essa tradição por aqui, tudo se restringindo à comoção e discurseira.
Assim, o Brasil, sai governo-entra governo, desmorona em torno de si e se distrai com os próprios escombros discutindo a poeira que se ergue até que ela assente. Conseguimos a façanha de combinar lama e poeira: com o Brasil ninguém pode! O país desmorona, desmorona até que chega um dia em que continua desmoronando. Nesta terra-lama sem Estado em que nunca faltou governo para nosso desgoverno consumado na ausência de políticas públicas, discutimos se o desmoronamento é de direita ou de esquerda, como se o PT — a manifestação perfeita de negligência com a coisa pública, mas não seu inventor — tivesse reinado 13 anos por ser de esquerda, e não porque ancorado no carisma do jeca, na fraude multiforme, no roubo profundo e nos bons resultados da Economia dos primeiros anos da era petista.
Era da qual, sempre cobertos de poeira, saímos ainda divididos em coxinhas, mortadelas, isentões, bonsominions, esquerdopatas, bolsopatas, direitopatas, imprensa-extrema, armamentistas, desamarmentistas, órfãos do Amoedo, viúvas do Alckmin, para entrarmos na anunciada nova era assim divididos porque seu líder aposta na estratégia infértil — a continuidade beligerante da divisão dos empoeirados em que a poeira se torna um vício por meio do qual evitamos a terrível contemplação do desmoronamento — para enfrentar o inimigo imaginário: o dragão extinto do comunismo. Nem sequer há o cadáver imaginário desse inimigo que nunca nos ameaçou nos últimos 50 anos, há sim o Estadossauro Rex — o fardo de um Estado sequestrado por corporações cujo custo demolidor traduz a única forma da presença do Estado: é o privilegismo-estadismo, a ideologia-mãe nesse rascunho de nação.
Vi uma mulher com a perna quebrada ser resgatada da lama em Brumadinho. Fisicamente distante da lama, sem parentes queridos sumidos na tragédia, na segurança da minha casa, não faço ideia do que aquela mulher está passando, mas me vi na lama com ela de onde foi resgatada e de onde não sai. Não saímos. Estamos todos lá, olhem bem, é um espelho esta nova tragédia antiga, a cotidiana e histórica: nos vemos todos nessa lama do atraso. Coxinhas, mortadelas, bolsomínios, isentões, mídia-comprada-vendida, todos nós em nossas caixinhas voluntárias ou atribuídas, estamos lá. Vi o presidente agir corretamente quanto ao crime em Brumadinho; Bolsonaro agiu com rapidez, montou um gabinete de crise e se fez presente. Mas vi também o tweet em que esse presidente correto desmorona ao postar “mistérios” sobre Adélio Bispo e aquele tenebroso 6 de setembro.
Ele tem direito a questionar, mas que o faça pela via institucional: deixe que de Adélio a Justiça cuida, ou o presidente não confia em seu Ministro da Justiça sob o qual a Polícia Federal trabalha? Levar isso às redes sociais revolve a lama em que escumalhas contrárias disputam, uma dando sentido à outra. Para que senão maquiar o vazio deixado pelo desmoronamento da noção de governo, Estado e sociedade? Bolsonaro não disputa mais nada: venceu, sobreviveu e foi eleito para governar, não para arrastar a instituição da Presidência à latrina das redes sociais onde não faltam bajuladores num patético campeonato de sabujice tão sabotador quanto a crítica hipócrita financiada por quem nos roubou.
E daí? Nada, cada um escolha como se mover na lama, ao presidente cabe jamais perder de vista que 14 milhões de desempregados migraram da era petista à espera não de seus tuítes dirigidos perigosamente pelos dois filhos mais novos bêbados de primitivismo, mas de suas decisões contra o Estadossauro, o confronto real que interromperá o desmoronamento e a lama que têm nos constituído como nação e formado uma visão de mundo. Quem pode travá-lo é o presidente que reagiu a Brumadinho, não o governante caricaturado pelo filho bolsonarismo nas redes sociais.